COP-26 e o debate urgente sobre o clima

Cientista explica por que as ações contra o aquecimento global precisam ser postas em prática rapidamente

Leila Marco e Alan Lincoln Paresqui

10/11/2021 às 12h27 - quarta-feira | Atualizado em 10/11/2021 às 13h57

Começou neste 31 de outubro, e seus trabalhos devem ser finalizados no dia 12 de novembro, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas de 2021 (COP), em Glasglow, na Escócia. Esta 26a edição do evento talvez seja uma das últimas janelas de oportunidade para controlar a emissão dos gases do efeito estufa e encontrar caminhos para viabilizar a meta estipulada pelo Acordo de Paris, a fim de evitar que a temperatura média mundial suba 1,5oC acima dos níveis pré-industriais. 

Mercedes Bustamante

Para entender melhor o que está em jogo nesse encontro (que reúne 197 nações) e os alertas que têm sido dados pelos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), a revista BOA VONTADE ouviu uma das maiores autoridades do Brasil sobre o tema: a professora do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB) Mercedes Bustamante, que é referência no estudo do Cerrado brasileiro e voz ativa na defesa desse bioma. 

No currículo dessa cientista, que a gabarita a discorrer a respeito do assunto, está, entre outros destaques, a sua participação em grupos de pesquisa e comitês nacionais e internacionais de alto nível, a exemplo do grupo de pesquisa LAB, que estudou as relações da Amazônia com o equilíbrio do clima, e a coordenação do capítulo “Agriculture, Forestry and Other Land Uses” (“Agricultura, Silvicultura e Outros Usos da Terra”, em português), do Grupo de Trabalho III: Mitigação do 5º Relatório do IPCC. Boa leitura! 

BOA VONTADE — Gostaríamos que nos fornecesse um panorama geral sobre o 6o relatório do IPCC, publicado em 9/8/21, e enfatizasse os pontos mais delicados que o documento apresenta. 

Mercedes Bustamante — Ele é um cartão vermelho para a humanidade, como foi destacado pelo secretário-geral da ONU  
[, António Guterres]. Se você pegar do primeiro relatório até o que estamos, verá que os fatos foram se somando, a certeza foi se intensificando, o conjunto de evidências... Nesse sexto relatório, a linguagem é mais contundente, incisiva, porque mostra claramente que a nossa janela de oportunidades para lidar com esse problema nas próximas décadas está se estreitando rapidamente. Quando olhamos o Acordo de Paris, que é o grande instrumento de política internacional que há para reverter o problema do clima, vemos que ele colocava a meta de aquecimento em 1,5ºC, pré-revolução industrial, até 2100; o documento atual do IPCC afirma que iremos cruzar esse limite bem antes do previsto inicialmente. Teremos que trabalhar de forma muito mais ambiciosa, rápida, drástica, na redução das emissões dos gases de efeito estufa. Alguns dos impactos que neste momento se fazem sentir irão ficar conosco por muito tempo; alguns, inclusive, são considerados irreversíveis.  

BV — Hoje não há mais dúvidas de que a ação humana é o fator determinante para o aquecimento global? 

Mercedes Bustamante — Não há mais espaço para o chamado negacionismo climático. O conjunto de evidências é robusto. O IPCC trabalha com múltiplas linhas de avaliação de pesquisas, de evidências, não só na literatura, mas também nas metodologias. São usados dados observacionais, dados de modelos, informações paleoclimáticas... Ou seja, a gente consegue voltar no tempo e ver como o clima foi mudando. Ele se utiliza também de dados biológicos, porque os organismos vivos respondem à mudança do clima, eles são guardiães, indicadores do que está acontecendo em termos de clima no planeta. E é esse conjunto amplo e robusto de evidências que aponta para a ação humana. Vivemos uma situação que não tem precedentes na história do planeta nessa escala de tempo, como a concentração de CO2, o principal gás do efeito estufa, que gera essa retenção de calor na superfície da Terra. Em 200 anos, o homem transformou de tal forma a química da atmosfera, como já não se via nos últimos 800 mil anos. Precisamos parar de discutir se é ou não por atividade humana, visto que não podemos mais nos dar ao luxo de perder tempo. 

BV — Temos assistido a vários eventos climáticos extremos ao redor do mundo. Essas ocorrências seriam evidências de que já estamos sendo afetados? 

Mercedes Bustamante — Sempre foi discutido que a mudança climática era algo que viria. O próprio Acordo de Paris colocava: “Em 2100...”, parecia algo longe do nosso cotidiano. Uma das características da mudança climática é o aumento médio da temperatura. Outra consequência dessa alteração climática é a maior incidência de eventos extremos. O clima ficará mais errático, variável. Teremos chuvas mais fortes, secas extremas associadas a grandes incêndios. E aí você passa a trazer efeitos para as populações, que hoje começam a se espalhar. Não tem um ponto no globo que não esteja afetado. Os primeiros países que levantaram o alerta foram os insulares (aqueles que são ilhas), exatamente por conta do aumento do nível do mar; começaram a ver que seu espaço estava diminuindo. Eles foram os primeiros que levantaram junto à ONU a preocupação de trabalhar, por exemplo, a adaptação. E, atualmente, vemos que não é só um problema de pequenas nações que são ilhas lá no Oceano Pacífico, temos isso ocorrendo na Alemanha, como as enchentes terríveis que aconteceram há poucos meses. Vimos cenas drásticas na China com uma chuva torrencial, pessoas dentro das estações de metrô com água na altura dos ombros... Não há país rico ou pobre que se sobreponha a isso, todos serão afetados. Existe uma diferença na capacidade de responder a esses eventos. Começamos a perceber quanto somos dependentes do clima, quanto ele afeta o nosso dia a dia, a geração de energia, a produção de alimentos... E aí a gente começa a pesar isso na balança. 

BV — Algumas pessoas podem achar que 2ºC a mais é pouco, mas o que se fala é de um aumento da temperatura média do planeta. Qual a diferença, professora? 

Mercedes Bustamante — A temperatura média global se difere da temperatura de superfície, que é essa que vemos variando de um local para outro, de uma hora do dia para outra, essa amplitude térmica. O que se está afirmando é que está aumentando a retenção de calor globalmente na superfície do planeta. Esse aumento na retenção não são essas variações momentâneas de curto prazo, que está dentro da meteorologia, mas é algo que está afetando a climatologia, essa variação de médio a longo prazo. O que isso significa? Essa maior retenção de calor torna o sistema um ciclo hidrológico muito mais ativo, intenso. Por isso que está chovendo com mais intensidade e que estão ocorrendo quebras de recordes de temperatura, foi o que aconteceu no Canadá. Antes era 0,5ºC de aumento, hoje tem quebra de recorde de 4ºC. Passamos a uma faixa que não tem precedentes, um território não mapeado, do qual não se sabe quais serão as consequências.  

BV — A América do Sul deve se preocupar mais com os alertas do IPCC? 

Mercedes Bustamante — Com certeza! O nosso continente já registra aumento da temperatura maior do que em outras regiões. Uma das previsões que se coloca, acentuando essa questão do aquecimento, é a redução das monções da América do Sul. Nós não estamos recebendo essa chuva de verão, como conhecemos, e isso causará um atraso e uma redução da quantidade de precipitação, que é a questão da nossa crise hídrica atual. Boa parte do Brasil é abastecida por essas chuvas que enchem os reservatórios, e nós a usamos durante o período seco. A situação que vivemos hoje é uma redução de vários anos, com precipitação abaixo da média. Você já tem aí uma indicação da nossa dependência da chegada do período chuvoso. (...) Uma das possibilidades é ter afetada a porção sul da Amazônia, que está bastante alterada pelos processos de desmatamento e que corre o risco de ter um processo de degradação acentuada, sendo esta a floresta com mais biodiversidade, a floresta tropical mais extensa do mundo. Também afeta o Cerrado e outros biomas brasileiros. Há ainda a questão da saúde. Existem vetores que são transmissores de doenças e se movimentam com a modificação do clima, como todas as outras formas de vida. Então, essa mudança do clima pode significar também uma alteração da distribuição das doenças, e o sistema de saúde terá de estar preparado para responder a isso. Vários setores serão impactados por essas mudanças. O Brasil precisa seriamente se debruçar sobre essas questões. 

BV — As mudanças climáticas causam também a queda brusca de temperatura, o resfriamento intenso e rápido? 

Mercedes Bustamante — Sim. Existe mais energia sendo acumulada no planeta, mas não distribuída de forma igual. Quando você acentua essas diferenças de temperatura, esse gradiente se torna mais extremo, provocando situações como essas, de ondas de calor e de frio mais extremas. No caso do Brasil, esse continente mais aquecido começa a trocar calor e energia de uma forma diferente com o continente Antártico, que é de onde vêm as nossas frentes frias. É uma situação que também se dá no Ártico, mudando sua circulação. Por isso, veremos tanto ondas de calor extremas no verão, como ocorreu alguns meses atrás, como ondas de frio muito intensas, a exemplo das que chegaram até a cidade de Nova York, nos Estados Unidos. O aquecimento da temperatura global aumenta e a consequência é tornar o sistema mais errático, mais variável. (...) A gente construiu as nossas sociedades, civilizações, contando com clima estável, mas o alteramos totalmente. 

BV — Por que evitar o derretimento de geleiras é tão importante?  

Mercedes Bustamante — Você imagina essas grandes superfícies cobertas com neve, com gelo, elas são aliadas valiosas para resfriar a Terra, funcionam como se fossem um espelho. A radiação solar bate ali, volta para o espaço e não gera aquecimento por assim dizer. Se há a diminuição dessa superfície, esse espelho que reflete a radiação é substituído por água ou solo e rocha. Então, essa superfície, em vez de rebater a radiação, a absorve, e esse é um fato preocupante. Quando absorve a radiação, a superfície da Terra aquece. Estamos perdendo massa dessas superfícies geladas bem mais rápido do que era previsto inicialmente. À medida que derrete, esquenta mais; esquenta mais, derrete mais ainda... E a subida do nível do mar é um fator bastante relevante. Imagina no Brasil, com oito mil quilômetros de costa, nossas principais cidades estão à beira do mar, nossas infraestruturas, nossos portos... E boa parte da população do mundo, se você olhar os continentes, encontra-se na zona costeira. O que acontece no Ártico não fica no Ártico, o seu derretimento tem consequências no nosso continente também. O clima é um sistema conectado e em cascata. Imagine um dominó. Bate em uma pedrinha do dominó e as outras vão caindo.  

BV — Ainda há tempo para reverter essa situação? 

Mercedes Bustamante — Esse relatório do IPCC, o primeiro de três, coloca as bases físicas, científicas, na mudança do clima. É um puxão de orelha. “Veja bem... Olha lá...” O segundo, que sairá até o fim desse ano, é sobre impactos de vulnerabilidade e adaptação. Ele dirá: “Bom, considerando o que o primeiro falou, os impactos vão ser esses, as sociedades humanas vão ser afetadas aqui, os sistemas naturais [assim], e a gente precisa lidar com essas consequências. O que vamos fazer?” E o terceiro, que sairá em março do ano que vem, trabalhará esse espaço das soluções: “O que está em nossas mãos? Como podemos resolver mais rápido para reduzir as emissões e contribuir para mitigar a mudança do clima?” A chamada do IPCC tem que ser vista nessas três “caixinhas”, e eu acho que os governos, a população, a sociedade, têm de entender esses três aspectos. O problema é real, ele existe, e a gente contribuiu para ele. Precisamos trabalhar com as consequências, defender os mais vulneráveis, cuidar daqueles grupos que têm menos facilidade de se adaptar, olhar a questão da desigualdade, que é muito relevante nessa discussão. Esse é o dever de casa, não dá para jogar a toalha.  

BV — A humanidade terá de se reinventar em um esforço conjunto? 

Mercedes Bustamante — É essencial entender que todos no mundo estão no mesmo barco. As pessoas podem estar até em partes diferentes dele, mas a embarcação é a mesma, não há outra. O problema só pode ser solucionado a partir de um esforço global. A atmosfera é um bem comum, não adianta um país tentar resolver o problema se outro continua emitindo, porque isso vai ser compartilhado com todos do orbe. [Trata-se de] um bem comum, que não é só da nossa geração, pertence às próximas gerações também; é necessário ser ético com relação a isso. A gente tem que fazer esse esforço agora, e é por isso que se vê um movimento tão intenso de jovens preocupados com o clima, e eles estão cobertos de razão, porque terão menos oportunidades no futuro se não trabalharmos bem no presente.