
Antártica e o futuro do clima
Expedição internacional comandada por cientista brasileiro investiga o impacto das mudanças climáticas no continente gelado
Leila Marco e Alan Lincoln
25/06/2025 às 15h09 - quarta-feira | Atualizado em 04/07/2025 às 14h47

Jefferson Cardia Simões é professor e glaciologista do Centro Polar e Climático (CPC), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É também representante do Brasil no Comitê Científico de Pesquisa Antártica (Scar), do Conselho Internacional de Ciência (ISC).
Uma das missões mais ambiciosas lideradas até hoje pelo Brasil ocorreu entre 23 de novembro de 2024 e 30 de janeiro deste ano. Trata-se da Expedição Internacional de Circum-navegação Costeira Antártica (ICCE, na sigla em inglês), comandada pelo professor Jefferson Cardia Simões, glaciologista do Centro Polar e Climático (CPC), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que possui experiência de quase quatro décadas de visitas ao continente gelado. A iniciativa contou com a participação de sete países: Brasil, Argentina, Chile, China, Índia, Peru e Rússia, com total de 61 cientistas, dos quais 27 eram de brasileiros ligados a instituições associadas ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Criosfera (INCT) e a projetos de pesquisa do Programa Antártico Brasileiro (Proantar/CNPq).
Para acessar o continente gelado, foi utilizado o navio quebra-gelo russo científico Akademik Tryoshnikov, do Instituto de Pesquisa Ártica e Antártica (São Petersburgo, Rússia), uma embarcação com 135 metros de comprimento e 30 metros de altura. O objetivo da expedição foi investigar os impactos das mudanças climáticas e da ação humana sobre o gelo da Antártica e dos ecossistemas locais. Com os dados coletados nesse empreendimento científico, é possível prever cenários ambientais futuros, graças a estudos biológicos e físicos, incluindo temperatura, salinidade, pH e biodiversidade (quantidade e diversidade de espécies) da costa antártica. Na ocasião, foi realizado ainda um levantamento aéreo inédito dessas massas de gelo.
Na entrevista exclusiva à BOA VONTADE, o professor Jefferson falou dos desafios da expedição e dos próximos capítulos do trabalho iniciado naquela ocasião, quando foram coletados dados e amostras de gelo para um estudo detalhado, cuja análise final deverá estar completamente pronta em 3 ou 4 anos, uma vez que, conforme destaca o próprio cientista, “a Ciência não gera resultados imediatos”, mas é fundamental para revelar o que se pode esperar nas próximas décadas.
Boa leitura!
BOA VONTADE — Qual a importância desses estudos para que entendamos o momento climático no mundo?
Jefferson Simões — Nós temos duas importantes questões científicas hoje em relação à Antártica. Primeiro, precisamos saber qual é a resposta desse grande manto de gelo, que tem em média 2 quilômetros de espessura, ao aquecimento atmosférico. Sabemos que seu degelo já está contribuindo para o nível médio dos mares, provavelmente, teremos um aumento de até 1,2 metro por volta de 2100. Há também a hipótese de que parte desse gelo é instável dinamicamente e que poderia, em cerca de 300 anos, correr mais rapidamente para o oceano, aumentando o nível dos mares entre 5 e 7 metros, o que seria uma catástrofe. Então, investigamos várias dessas geleiras com potencial de serem instáveis.
O segundo ponto, também relacionado à questão das mudanças do clima, é que o oceano que chamamos de Austral, antigamente denominado Antártico, é um dos que mais estão aquecendo no mundo todo, e, com isso, há outras modificações, ele está se tornando menos salino, pela entrada da água de derretimento das geleiras, e mais ácido, isso tudo afeta os microrganismos, que possuem o papel de sequestrar o carbono em excesso da atmosfera, eles são os verdadeiros pulmões do planeta.
BV — Quais os desafios de coordenar uma missão como essa de alta complexidade, que, além de estar em um lugar atípico por 70 dias, era necessário gerir uma equipe de mais de 60 pesquisadores?
Jefferson Simões — Vale dizer que estávamos lidando com pessoas de sete países e de diferentes culturas. Só os nossos colegas indianos utilizavam quatro línguas distintas; então, tínhamos de conviver com mais de 10 idiomas. Uma expressão em uma língua não se equivale em outra, você tem que ter cuidado, ainda tem a questão de religiosidade, de efemérides de cada cultura. (...) Então, é preciso saber o momento certo de falar as coisas, tendo sempre o conceito de diplomacia da Ciência. Nesse caso, temos o problema gravíssimo que é a questão das mudanças ambientais globais.

BV — Por que é importante, em um estudo como esse, contar com cientistas das mais diversas regiões do mundo?
Jefferson Simões — Para começar, o clima e a circulação da atmosfera do oceano não possuem limites geográficos políticos. Ele é uma intenção de massas de ar e água entre as diferentes latitudes e, principalmente, é um conceito simples, mas o clima só existe no planeta Terra porque há ar e água, oceanos se movimentando. É necessário entender essas inter-relações entre as diferentes regiões, especificamente entre a Antártica e outras partes do globo. (...) Examinando essas conexões [com as diversas localidades], é possível melhorar o cenário da previsão meteorológica e climática. Existe também a questão da biodiversidade, de como o derretimento do gelo afeta todos os níveis do mar, mas não é de maneira homogênea, depende de uma série de fatores, da crosta, da morfologia e de cada lugar no mundo, que vai responder diferentemente. Temos que trabalhar em conjunto, não conseguiremos resolver esse problema sozinhos.
BV — Sabemos que os cientistas estão interpretando, processando, os dados obtidos por essa missão, mas, de imediato, qual foi a sua percepção na chegada à Antártica?
Jefferson Simões — Como estou na 27a missão à Antártica, eu consegui observar ao longo desses quase 40 anos de visitas, expedições, mudanças muito claras, principalmente na parte mais ao norte da Antártica, que chamamos de Península Antártica. Ela vai mais ou menos entre 70° sul até 62°, exatamente onde o Brasil tem a sua Estação Antártica Comandante Ferraz. Quando passamos por lá — fazia alguns anos que eu não ia ao local —, o que se nota é que as geleiras estão sobrevivendo cada vez mais alto, ou seja, estão derretendo nas altitudes menores. Nós estamos vendo o esverdeamento das ilhas ao redor da Antártica. O que que é isso? Estão expandindo os campos de musgo, entrando graminhas, espécies estranhas estão começando a entrar. Espécies de pinguins, de peixes, estão mudando cada vez mais para o sul. Essas geleiras estão derretendo e jogando água que não é salina, porque a geleira é formada pela precipitação de neve.
BV — Sabe-se que a quantidade de dados levantados nessa expedição foi expressiva. Como ocorre a troca de informações entre os grupos de pesquisas internacionais?
Jefferson Simões — É um processo científico padrão, que chamamos de “método científico das ciências naturais”. Coletamos amostras de tudo quanto é tipo, das 43 sondas atmosféricas de testemunhos ou amostras do fundo oceânico, amostras de gelo e neve, várias estações com sondas gráficas... Tudo isso gerou uma bateria de informações, foram milhares e milhares de dados coletados. Imagine que, somente com relação às condições atmosféricas, foram geradas informações a cada minuto, durante 70 dias de missão. Isso é distribuído entre todos os grupos de trabalho, e é importante, por ser uma missão internacional e colaborativa, que o acesso aos dados seja aberto e integral. Existe algo que poucos sabem: o tratado da Antártica impinge aos países que lá estão que os dados sejam públicos. Pode levar um período de 3 ou 4 anos, quando o estudo está sendo produzido, mas depois têm que ser compartilhados. Esses dados e amostras vão para o laboratório dessas sete nações participantes. Começamos agora, em março e abril, a fazer análises químicas, físicas, biológicas... Dependendo do tipo de amostra, isso gerará dados ao longo de 1 ano, um ano e meio; esses dados são gerados, compartilhados com outros cientistas, e aí tem início a fase de fazer análises estatísticas, de pensar na distribuição espacial dessas informações, de tentar entender, por meio de modelos matemáticos e de conceito, o que ocorre; depois, vai para a fase final, que é escrever o artigo e passar pela avaliação de pares, que é essencial. Hoje, nós insistimos nisso, porque há pessoas que jogam qualquer visão, informação errada ou desinformação na internet e acham que isso é Ciência. Não é! A Ciência é feita por essa produção longa, que demora.
BV — Por sinal, a Ciência explica que, analisando o gelo, é possível conhecer melhor o passado. De que forma voltar nosso olhar para o que se deu nos ajuda a entender o momento atual?
Jefferson Simões — Como saberei o comportamento do clima no futuro? Eu já possuo modelos do presente, faço, inclusive, modelos meteorológicos para as próximas semanas. Mas, em uma escala de tempo maior — de 10, 20, 50 anos, 100 anos, 1.000 anos —, eu tenho que conhecer o que ocorreu no passado. Então, monto uma maneira de modelar o clima e vejo se funciona para o passado. Essa é uma Ciência de mais de um século, que é conhecida como Paleoclimatologia, o clima do passado. Eu trabalho nessa área, usando amostras de neve e gelo. Dessa forma, consigo reconstruir se o clima era mais quente ou mais frio, mais úmido ou menos úmido. Variações de temperatura, poluentes... O meu grupo, por exemplo, detectou até poluição de urânio na Antártica desde a década de 1980, vindo da Austrália. Ao reconstruir essa história, vemos o que tivemos de impacto. Só dessa maneira vamos realmente determinar o que é impacto humano e o que é variação natural do sistema do clima.
BV — Com décadas de pesquisa e entendimento profundo da questão das geleiras, o que mais chama sua atenção nesse processo de intensificação e aceleração de eventos climáticos?
Jefferson Simões — O que mais impressiona são as geleiras dos trópicos e das regiões temperadas. Vou dar um exemplo clássico das geleiras do Peru e da Bolívia, que os brasileiros não se dão conta, muitas vezes, que chamamos de “geleiras amazônicas”, porque elas são as nascentes da bacia do Rio Amazonas e estão desaparecendo. A tendência é que desapareçam, pelo menos, 70% do volume de água dessas geleiras nos próximos 30 anos. Isso está ocorrendo não só na América do Sul, mas, nas montanhas rochosas dos Alpes, já há estações de esqui que não existem mais, porque não há gelo, neve, nos Himalaias... É interessante que isso, em termos de volume, é 1% do gelo do planeta, mas que está desaparecendo rapidamente. E agora também o gelo da Groelândia, que é muito mais importante, que não vai derreter totalmente, mas representa um aumento do nível do mar de seis metros. Cerca de 90% do volume de gelo do planeta está na Antártica, que ainda está no início da contribuição do aumento do nível dos mares. Então, o que me preocupa imediatamente — e, por curiosidade, este é o ano da preservação dessas geleiras tropicais e geleiras temperadas, declarado pela Unesco — está relacionado a processos aqui da Amazônia Ocidental. (...) Outra questão que alguns colegas estão analisando é ver qual a contribuição das queimadas da Amazônia e da África para o escurecimento do gelo de forma geral e da Antártica.

As expedições à Antártica começaram ainda no final do século 18, mas, na época, os exploradores ficavam a uma distância de 1.000 a 2.000 quilômetros da costa. Isso ocorria por causa da grande faixa de mar congelado ao redor. Agora, com o uso de navios quebra-gelo, eles se aproximam muito mais do objetivo, chegando a apenas 1 quilômetro dos paredões de gelo.
Principais razões para o interesse científico na Antártica
Segundo o glaciologista Jefferson Cardia Simões, o interesse dos cientistas na pesquisa da Antártica é bastante diversificado, mas principalmente motivado pelo papel fundamental que o continente desempenha no clima global, na compreensão das mudanças climáticas passadas e presentes, além de ser um local único para estudar organismos que se adaptaram a condições extremas. Entenda melhor essas motivações na página seguinte:
1. Papel no clima global: A Antártica influencia a circulação atmosférica e oceânica ao redor do planeta, tendo um impacto direto no clima de várias regiões do mundo.
2. Acompanhamento das mudanças climáticas: O gelo antártico guarda um registro valioso das temperaturas e condições climáticas dos últimos milhões de anos. Isso permite que os cientistas reconstruam o clima do passado e compreendam melhor o que estamos vivendo atualmente.
- Diferente do Ártico, que é uma calota de gelo flutuante, a Antártica é um continente de terra firme, com uma área de aproximadamente 13,6 milhões de quilômetros quadrados — maior do que o Brasil, a Argentina e o Chile juntos. Ela é coberta por uma camada de gelo que, em média, tem cerca de 2 quilômetros de espessura. Se essa camada de gelo derreter, mesmo que parcialmente, isso poderia causar mudanças drásticas nos padrões climáticos, nos oceanos e na vida selvagem do planeta.
- A Expedição Internacional de Circum-navegação Costeira à Antártica mapeou áreas no oceano que possuem uma grande variedade de espécies de animais e plantas marinhas (hotspots de biodiversidade), para compreender a resposta da fauna polar às variações do clima. Eles colheram também informações sobre microplásticos e contaminantes emergentes na região.
- A missão percorreu mais de 27 mil quilômetros ao redor da costa antártica.
- O Brasil é o sétimo país mais próximo desse continente gelado.