Desafios do planeta para a COP-26

Especialista fala de comprometimento e de ações urgentes para minimizar o impacto da mão humana no meio ambiente

Leila Marco e Camila Barbieri

11/10/2021 às 09h03 - segunda-feira | Atualizado em 14/10/2021 às 14h01

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Já foi a época que dedicar tempo e atenção ao meio ambiente era apenas uma questão de ideal, de respeito à Mãe Natureza. Atualmente, o que se vê é que esses assuntos passaram a ocupar o topo da lista da agenda global da Organização das Nações Unidas (ONU), cuja realização pode ser a responsável pela preservação da vida de milhões de pessoas pelo planeta. Recentes impactos ambientais causados pelo aquecimento global no globo terrestre têm mostrado a força de seus efeitos e a relevância de se debruçar sobre trabalhos como o relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), da ONU, que apontou o recrudescimento de eventos climáticos extremos, a elevação da temperatura média de nosso orbe e consequências irreversíveis de ações provocadas pelo ser humano. É fundamental também acompanhar de perto as resoluções que serão tomadas durante a Cúpula COP-26, em Glasgow, na Escócia, entre os dias 1º e 12 de novembro de 2021. 

Na entrevista com Stela Herschmann, especialista em Política Climática do Observatório do Clima, fica clara essa necessidade, como também a parcela de responsabilidade que cada cidadão tem no destino de seu país e da humanidade. 

BOA VONTADE — O relatório divulgado em agosto pelo IPCC indica o avanço das mudanças climáticas no planeta. É possível ainda manter o aumento da temperatura global abaixo de 2ºC neste século? 

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Stela Herschmann — Ele mostrou que a situa­ção realmente é crítica. Dos cinco cenários avaliados pelos cientistas, três deles são catastróficos, levando a gente para uma meta distante dessa mencionada de 1,5ºC a 2ºC, previstos pelo Acordo de Paris, que regula a questão climática mundial. Mas ainda existe uma janela de oportunidade, nem sei se podemos usar esse termo, porque talvez seria melhor dizer uma “fresta” de oportunidade, que exige a redução drástica das emissões de carbono a partir de agora. Não podemos esperar nem mais um minuto. Nesses próximos oito anos, até 2030, seria crucial cortar quase metade das emissões, e, até 2050, teríamos que tornar o carbono neutro; o mundo precisaria encontrar um equilíbrio entre as emissões e as remoções do gás de efeito estufa. Os cenários para se conseguir ficar dentro desses limites exigem ações muito enérgicas. Não há mais nenhum minuto a perder, não dá mais para apenas elaborar planos para lidar com a questão climática, temos que agir! 

BV — Temos visto o agravamento de extremos climáticos em todas as regiões do globo. O que se espera para os próximos anos? 

Stela Herschmann — Os eventos extremos se tornarão cada vez mais frequentes com a mudança no clima que o homem está promovendo. Essa é uma mensagem muito importante do relatório do IPCC. O ser humano é o principal fator que está contribuindo para a elevação da temperatura; cerca de 98% do aumento que se viu até agora, cerca de 1,1ºC, foi provocado pelo homem. Os cientistas concluíram que, a cada meio grau de aumento da temperatura, esses extremos de calor, de tempestades, de secas, que afetam todos nós, vão se tornar mais presentes. Faz-se necessário o comprometimento sério dos países. Isso não é mais um debate da Ciência. Já existe consenso. Os países precisam assumir compromissos mais audaciosos no âmbito internacional, implementá-los e, principalmente, conseguir fazer com que essas reduções de emissões de gases de efeito estufa aconteçam onde a gente vive, nas nossas cidades, nas nossas vidas diariamente. 

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BV — Uma das formas de mudar o rumo atual dos acontecimentos está na organização da sociedade civil. O que cada cidadão pode fazer por um futuro melhor? 

Stela Herschmann — Acredito que a população tem a oferecer contribuições muito relevantes. As escolhas dos consumidores têm um impacto quando, por exemplo, se muda uma dieta. O brasileiro come muita carne, quase todos os dias. Se as pessoas diminuírem o consumo de carne — não seria nem o caso de todo mundo virar vegetariano —, essa redução pode ter um impacto bem positivo. [Fazer também] melhores escolhas de transporte seria fundamental. Mas o poder maior está no voto, porque as políticas públicas que irão realmente promover as transformações de que a gente precisa são decididas no Congresso Nacional.  Recentemente foi aprovada a Medida Provisória (MP) da Eletrobrás, que está mudando a nossa matriz energética — que sempre foi limpa, baseada em energias renováveis — e está agora contratando para o futuro termoelétricas. Ainda que movidas a gás, as termoelétricas são consideradas energias de transição de uma fonte muito poluente, que emite muito CO2.  (...) Há também a lei que dá anistia aos grileiros de terra, o PL [Projeto de Lei] da grilagem, com a qual estamos incentivando o desmatamento da Amazônia, que é a principal fonte de emissão dos gases de efeito estufa no Brasil.  O mundo precisa de líderes que incorporem compromissos mais ambiciosos, que se traduzam em política interna. O meu apelo para a população brasileira é que, quando escolherem os seus candidatos, votem naqueles que incorporem a pauta climática nas suas propostas. (...) A pandemia mostrou que é possível desenvolver em um ano uma vacina que demoraria 10. Quando o mundo realmente se une em torno de uma causa, dá peso e seriedade a ela, coisas incríveis acontecem. Isso dá uma pontinha de esperança. Que esse momento de recuperação da crise e de todos os males causados por ela seja uma oportunidade para fazer uma transição, como já falamos, para o carbono neutro. Investir em energias renováveis, em carro elétrico, em infraestruturas que sejam resilientes, porque já sentimos os impactos das mudanças climáticas. 

BV — O cenário de escassez hídrica que vive o Brasil mostra como o meio ambiente interfere na situação econômica e social do país, com aumentos de energia elétrica e da inflação. Que ações são necessárias a curto e a longo prazo para revitalizar os nossos reservatórios?  

Stela Herschmann — A questão da seca está conectada com a nossa matriz energética e a produção. A nossa agricultura, por exemplo, não tem irrigação, mais de 80% dela conta com a chuva e grande parte da nossa matriz energética está baseada nesses reservatórios. [Os governos] não consideraram o cenário de clima instável e, até hoje, não incluíram as perspectivas das mudanças climáticas que o relatório do IPCC destaca. Temos de migrar para as outras fontes renováveis, cujo potencial do Brasil é enorme, que são a eólica e a solar. E, no curto prazo, para ter um resultado bom e relativamente rápido, se deveria investir muito em reflorestamento. Precisamos parar o desmatamento na Amazônia, porque a gente tem a corrente de rios voadores que vem da Amazônia e traz essa umidade para o Centro-Oeste, para a Região Sul, onde está a maior parte dos reservatórios de água das nossas hidrelétricas que abastecem o Sudeste brasileiro. Essas medidas são urgentes, porque a Amazônia tem um ponto de não retorno. Já a desmatamos tanto que, se a gente passar disso, que é ali entre 20%, 25% do total da área, ela começa a deixar de ser floresta e vira savana. Os cientistas brasileiros têm alertado para esse problema. A Amazônia é o que chamam de um grande sumidouro de carbono. Ela o absorve e pode ajudar o Brasil e o mundo a cumprirem essas metas do Acordo de Paris. Inclusive, se não existir a Amazônia, se a gente acabar com a floresta, o mundo pode esquecer a meta de 1,5ºC a 2ºC. É esse o tamanho da importância da Amazônia para regular o clima no mundo. 

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BV — O que se pode fazer para preservar a Amazônia? 

Stela Herschmann — A política mais eficiente para a preservação da Amazônia é a criação de parques e de unidades de preservação de terras indígenas. Os povos indígenas e as comunidades tradicionais têm um jeito de vida com a floresta que é muito eficiente. Eles não danificam a Amazônia, não destroem a floresta, e, com isso, ela fica no seu auge, no seu esplendor. Eu acabei de voltar de uma viagem à Amazônia. E é bom esclarecer que os incêndios na Amazônia não acontecem de forma espontânea. Eles são provocados. Tiram essas madeiras mais valiosas para vender, depois vão retirando as árvores que não têm valor, seja com motosserra, seja com aquele correntão, que é uma cena horrorosa, derrubam essa floresta, depois colocam fogo. E esse fogo você não coloca uma vez só, não; tem que colocar três, cinco vezes, nessa área para poder limpar e aí poder usar como pasto para a pecuária. Dados do Greenpeace revelam que entre 70% e 80% da área desmatada na Amazônia vão acabar virando pasto para gado. 

BV — Estamos nos aproximando da COP-26, que ocorre em novembro, em Glasgow, na Escócia. O que se pode esperar desse encontro? 

Stela Herschmann — Ela é uma COP importante, porque o Acordo de Paris, assinado em 2015, tem uma arquitetura para regular como os países vão contribuir para a mitigação das emissões de gases de efeito estufa e atingir essa meta de 2ºC, com os esforços para ficar abaixo de 1,5ºC, mas ele precisava de detalhes mais práticos. Ele foi assinado em 2015 e, desde então, está se ajustando como funcionará na prática. Neste ano, a ideia é finalizar esse “livro de regras”. 

ONU: pandemia gerou a maior crise sistêmica do planeta desde 1945

No dia 29 de setembro, órgãos da Organização das Nações Unidas (ONU) publicaram novo relatório, intitulado “Covid-19 e Desenvolvimento Sustentável: avaliando a crise de olho na recuperação”. Contemplando 94 indicadores, o documento apresenta o impacto da pandemia em diversos aspectos, como na educação, na economia e nos sistemas públicos de saúde de diferentes países. A conclusão não é nada animadora: o mundo está retrocedendo em relação aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). “Considerada a pior crise sistêmica já vivida no planeta, desde a criação das Nações Unidas, a pandemia da Covid-19 vem atingindo a população mundial de forma desproporcional, aprofundando desigualdades (...)”, aponta o levantamento.  

O estudo fez uma radiografia do Brasil, com dados de todos os Estados e do Distrito Federal, e constatou que, em nosso país, um conjunto de novas desigualdades deverá emergir com força a partir da atual crise sanitária. Dentre as 55 possíveis medidas recomendadas para o enfrentamento desse cenário, constam: priorizar a reabertura de escolas com segurança, garantir renda básica universal, conectar todas as crianças e adolescentes à internet até 2030, oferecer linhas de crédito verde atrativas e investir em cidades inteligentes.  

O relatório considera ainda que “é necessária uma nova geração de políticas públicas e transformações sociais que facilitem a transição para uma sociedade menos desigual, mais resiliente e com impactos controlados sobre a natureza. O futuro começa hoje, não amanhã”.