Sinal de alerta no consumo de bebidas alcoólicas

Pesquisas apontam que, infelizmente, a ingestão dessas substâncias cresceu na pandemia, como "recurso" para fuga de emoções

11/10/2021 às 09h40 - segunda-feira | Atualizado em 13/10/2021 às 10h20

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Em 2020, a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) realizou a pesquisa “Uso de álcool durante a pandemia da Covid-19 na América Latina e no Caribe”, cuja conclusão foi preocupante: o consumo de bebidas alcoólicas aumentou durante a crise sanitária. Dado da plataforma Compre & Confie, empresa de inteligência de mercado focada em e-commerce, endossa essa lamentável constatação: a venda on-line de bebidas subiu, entre fevereiro e maio de 2020, 93,9% em relação a esse mesmo período de 2019. 

No estudo da Opas, que contemplou populações de 33 países, 23 mil brasileiros maiores de 18 anos foram entrevistados. Dessa amostra, 42% confirmaram alto consumo alcoólico durante o distanciamento social. O uso pesado, popularmente conhecido como “porre”, prevaleceu entre os mais jovens, enquanto que as pessoas com poder aquisitivo mais elevado beberam com maior frequência. O relatório considera que a instabilidade emocional propiciada pelo período favoreceu tal realidade. “À medida que os índices de ansiedade, medo, depressão, tédio e incerteza passaram a ser mais comumente notificados durante a pandemia, o consumo de álcool também aumentou, apesar do fechamento de estabelecimentos licenciados”, registra. 

Psicóloga Maria Sônia Prado

Para entender melhor esse lastimável cenário e contribuir para a busca de uma vida sempre mais saudável, a equipe da revista BOA VONTADE conversou com a psicóloga Maria Sônia Prado, coordenadora do curso de Psicologia da Universidade Estácio de Sá em São Paulo/SP. De acordo com a especialista, além de prejudicial ao organismo, a dependência química é uma triste ilusão para quem busca a felicidade, a qual, como afirma a entrevistada, “não está na droga, no álcool, na ingestão de comida em excesso”. 

BOA VONTADE — Por que a pandemia contribuiu para o aumento do consumo de álcool? 

Maria Sônia — As pessoas estão habituadas e foram constituídas para se relacionarem com outras. E a pandemia fez com que tivéssemos de nos isolar. No momento de solidão, de tristeza, os indivíduos buscam no álcool uma “felicidade”, de modo que possam elevar o humor, relaxar. A maioria das pessoas passou a consumi-lo mais porque se sentiu com a possibilidade, cada vez menor, de ter outros por perto. Por isso, foi se intensificando o consumo [de bebidas] na busca incessante dessa felicidade inexistente. É uma forma de compensar a falta das pessoas que se gosta. (...) Contudo, como acabam não encontrando essa felicidade, vão aumentando a ingestão [de álcool]. (...) A pandemia não acabou. Isso vem despertando a sensação de isolamento acompanhada de tristeza, o que leva muitos a um processo depressivo. E isso, com certeza, faz com que busquem alternativas de compensação a essa frustração. E o álcool, infelizmente, foi uma delas. 

BV — Muitas fake news surgiram nesta pandemia. Há quem afirme que ingerir álcool previne o novo coronavírus. Isso é mito, certo? 

Maria Sônia — Não previne. Já se tem provado cientificamente que não há nenhuma possibilidade de o álcool prevenir ou ajudar no tratamento da Covid-19. Infelizmente, as pessoas foram alertadas com relação a isso, mas acabaram acreditando muito mais nas fake news. O álcool não ajuda em nada no combate ao novo coronavírus e pode desencadear, além de um grande vício que pode afetar a sociedade, mais violência no comportamento de quem o ingere. Sem falar que, fisicamente, ele faz muito mal a todos os órgãos, entre eles o fígado, o rim, o coração... Ele pode provocar desde uma hipertensão até alteração no metabolismo, ocasionando doenças mais graves. 

BV — Um estudo da respeitável revista médica The Lancet constatou que apenas uma taça de vinho ou cerveja já traz sérios riscos à saúde. Ou seja, não existe uma quantidade segura para ingerir bebida alcoólica, correto? 

Maria Sônia — Exatamente. Isso foi comprovado há tempos. Existia um senso comum que perdura ainda: “Ah, é um copinho só de cerveja. É um golezinho. Uma taça de vinho não faz mal”. Ao beber, você vai modificando o seu organismo, acaba dilatando e retraindo as suas veias, [por causa da alteração no cérebro]. É como se fosse uma sanfona cerebral. E isso vai comprometendo o organismo. Então, [os prejuízos ocorrem] independentemente da quantidade. 

“Ingerir álcool, como qualquer substância que possa ocasionar alguma dependência, não é a forma mais adequada de buscar a própria felicidade. (...) Não é o álcool, não é a droga, não são os doces, as massas, os pães, que trarão felicidade. Não faça deles uma fuga, algo onde encontrará a felicidade. Você a encontrará no seu bem-estar, que não está na droga, no álcool, na ingestão de comida em excesso.” 

BV — Por falar em prejuízos físicos, quais as consequências do álcool para o aparelho psíquico de quem o consome? 

Maria Sônia — Quando você bebe um copo de vinho, um copo de cerveja, seja lá qual for a bebida, num primeiro momento fica mais relaxado. (...) Isso ocorre porque o seu cérebro, com uma forte interferência do álcool, está sendo induzido a dilatar os vasos sanguíneos, reação responsável por tal sensação. Normalmente, isso atrai as pessoas que estão muito tensas, sofrendo as pressões e correria do dia a dia. (...) Se você consome álcool o tempo todo, ou de uma forma muito rotineira, isso leva o seu cérebro a um exercício rápido de mudança de comportamento, desencadeando não só problemas emocionais, mas físicos mesmo, ocasionando até lesões neurológicas, que tiram você da sua normalidade. Então, [consumir bebida alcoólica] não é algo aconselhável. (...) A alegria que ela proporciona é temporária e faz com que depois você possa se tornar mais agressivo, descontrolado emocionalmente; e isso não é positivo nem a você e nem às pessoas com quem se relaciona. Imagina-se que [esses efeitos negativos só ocorram] a longo prazo, mas não é bem assim. (...) Essas mudanças de comportamento não são tão perceptíveis por nós. “Ah, eu estou bebendo hoje, mas só daqui a 40 anos verei a consequência disso.” Não! Cada vez menos se tem a possibilidade de recuperação com relação à utilização do álcool. Isso se vê em qualquer um que o consome, jovem ou adulto. Quando a pessoa o ingere, tem a ressaca e aparentemente no dia seguinte está bem (externamente), ela continua abusando, pois acha que foi algo momentâneo. Mas não é. A cada episódio, o seu cérebro vai sofrendo junto. (...) As sequelas, muitas vezes, acontecem a curto prazo. 

BV — A bebida é inimiga de uma vida mais tranquila? 

Maria Sônia — Sem dúvida, porque, quando você domina o seu comportamento, por mais que tenha vontade e o impulso de agredir alguém, acaba se controlando, se volta para os seus valores e não tem essa conduta inadequada. Quando se utiliza o álcool, após o relaxamento, seu comportamento fica alterado, e você acaba tendo ações não previstas. São atitudes inesperadas até pelo próprio indivíduo que agride. [Ele pode cometer] não só a violência contra a mulher, mas contra os filhos, os vizinhos, no trânsito, a quem não conhece. 

“Três grandes pesquisas comprovaram que, infelizmente, o consumo de álcool aumentou não só entre os jovens e adultos, mas muito mais entre indivíduos da terceira idade. Essa é uma preocupação bastante grande a que a sociedade deve ficar em alerta.” 

BV — Além do uso abusivo de álcool, outros tipos de dependência química também se agravaram com a pandemia? 

Maria Sônia — A gente acabou não tendo condições de viver emoções positivas naturais nessa crise sanitária. Então, as pessoas intensificaram as dependências que já tinham. Quem fuma — já há pesquisas que mostram isso — acabou aumentando a quantidade de cigarros diariamente. Muitos foram atrás de compensações e acabaram utilizando essas opções químicas... O consumo de álcool, cigarro e até mesmo de drogas aumentou, e muito, não só entre os jovens e adolescentes, mas também entre as pessoas na terceira idade. 

BV — Por falar em idosos, há pesquisas que comprovam o aumento da ingestão de álcool entre esse público? 

Maria Sônia — Há, sim. E uma delas traz uma grande preocupação, porque, quando você chega à terceira idade, já apresenta algumas fragilidades; somado a elas, o álcool contribui para o desencadeamento de várias doenças. (...) Três grandes pesquisas em relação a isso comprovaram que, infelizmente, o consumo de álcool aumentou não só entre os jovens e adultos, mas, conforme dissemos, entre indivíduos da terceira idade. Essa é uma preocupação bastante grande a que a sociedade deve ficar em alerta. Como cresceu muito a procura por médicos para tratamento de diabetes, de hipertensão, isso chamou a atenção dos cientistas: “Por que essas pessoas estão procurando cada vez mais esses tratamentos? O que acontece?” Foram feitas pesquisas, e constatou-se que, além das fragilidades decorrentes do processo de envelhecimento delas, uma grande parcela de doenças foi intensificada pelo consumo de álcool neste momento de pandemia. 

BV — Que dicas daria para que as pessoas não caiam na armadilha de fugir da realidade com o uso de álcool e outras drogas? 

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Maria Sônia — Ingerir álcool, como qualquer substância que possa ocasionar alguma dependência, não é a forma mais adequada de buscar a própria felicidade. Deve-se substituir essa consideração de fuga por coisas que se gosta de fazer, por exemplo, uma atividade física na sala de casa, uma caminhada, corrida, praticar algum esporte em parques que já abriram — não se esquecendo dos cuidados contra a Covid-19. Isso faz com que o organismo libere uma substância chamada dopamina, que nos auxilia a buscar dentro de nós essa felicidade novamente. Não há necessidade de se apegar a nada. Não é somente a bebida ou as drogas. É a comida... Muitas pessoas estão se apegando a volumes grandes de refeição por causa da ansiedade que têm enfrentado. Não substitua o seu momento de tristeza, de depressão, de isolamento, por coisas que não sejam da natureza mesmo. (...) A gente sempre orienta: busque praticar algo de que gosta. Não é o álcool, não é a droga, não são os doces, as massas, os pães, que lhe trarão felicidade. Não faça deles uma fuga, algo onde buscará a felicidade. Você a encontrará no seu bem-estar, que não está na droga, no álcool, na ingestão de comida em excesso. E atenção ao estresse. Ele faz parte da sua vida e não é necessariamente algo ruim. O que a gente precisa é saber controlá-lo, dosá-lo. O que sempre falo: as pessoas estão trabalhando e estudando mais em casa. Atente-se ao seu horário de trabalho, de estudo, mas, nos intervalos entre eles, busque o que gosta: cozinhar, caminhar, escrever, andar de bicicleta, pintar... Procure alternativas além do trabalho. O que tenho visto muito: pessoas estão trabalhando em casa, ligam seu computador às 8 horas e encerram seu expediente às 22 horas. Não é porque você está em casa que precisa misturar sua vida familiar e social com o trabalho. Busque outras atividades além de tarefas profissionais e acadêmicas. 

“O álcool não ajuda em nada no combate ao novo coronavírus e pode desencadear, além de um grande vício que pode afetar a sociedade, mais violência no comportamento de quem o ingere. Sem falar que, fisicamente, ele faz muito mal a todos os órgãos. Para o fígado, o rim, o coração... Ele pode provocar desde uma hipertensão até alteração no metabolismo, ocasionando doenças mais graves.” 

BV — Como a pessoa que já é dependente química pode encontrar apoio para abandonar o uso de substâncias tóxicas? 

Maria Sônia — Por muitos anos se ouviu dizer que o alcoolismo e outros tipos de dependência química não têm cura. O que não é verdade. Acontece que dificilmente os que são dependentes conseguem sozinhos. Se a pessoa quiser, ela pode buscar apoio de um psicólogo, mas precisa ir além, porque o problema é químico. Há a necessidade do acompanhamento médico, normalmente de um psiquiatra, que auxiliará nesse tratamento. E depois ela pode ser acompanhada por um psicólogo. Hoje já existem dentro dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs), ligados à prefeitura de cada município, profissionais qualificados que, com certeza, estão dispostos a ajudar. A pessoa ainda pode buscar, nas universidades onde há o curso de Psicologia, o atendimento gratuito de suas clínicas, bem como o apoio de ONGs e instituições. Mas inicialmente o ideal é procurar auxílio no CAP. Com certeza, ela conseguirá sair desse processo de dependência, seja do álcool, das drogas, ou mesmo do cigarro. A dependência do açúcar também é algo que está crescendo bastante. “Ah, ele fuma há 50 anos. Bebe há 20 anos...” Não importa. Há, sim, a possibilidade de a pessoa substituir essa química por algo saudável.