Eventos climáticos e agravamento de doenças

Pela primeira vez, estudo de larga escala revela o impacto direto das variações de temperatura na saúde humana

Leila Marco e Camila Barbieri

14/12/2021 às 13h47 - terça-feira | Atualizado em 14/12/2021 às 16h20

No dia 31 de outubro, a conceituada revista médica The Lancet Regional Health — Americas publicou preo­cupante estudo conduzido em parceria pela Universidade de Monash, em Melbourne, na Austrália, e pelo Instituto de Estudos Avançados (IEA), da Universidade de São Paulo (USP), no qual foram diagnosticados mais de 200 mil casos de doenças renais provocadas diretamente pelas variações bruscas de temperatura.

Vivian R. Ferreira

Paulo Saldiva

Esse é o primeiro trabalho em larga escala que identifica uma relação direta entre as mudanças climáticas e a saúde. Um dos pesquisadores envolvidos nesse levantamento, que avaliou mais de 2,7 milhões de hospitalizações entre 2000 e 2015, em 1.816 municípios brasileiros, é o entrevistado desta edição: o médico patologista dr. Paulo Saldiva, professor do IEA, da USP.

No bate-papo, ele explica como foi desenvolvida a pesquisa e fala de que forma o desequilíbrio climático tem prejudicado o bem-estar das pessoas, em especial dos mais vulneráveis. Para o dr. Saldiva, é importante que a previsão do tempo passe a incluir alertas com vertentes para a saúde humana e que esses aspectos estejam também presentes em políticas públicas.

BOA VONTADE — Primeiramente, agradecemos por nos conceder essa entrevista. Gostaríamos de saber quais são as bases desse estudo e as principais conclusões dele?

Dr. Paulo Saldiva — Primeiro, é um prazer falar com vocês, ser convidado [pela Super Rede Boa Vontade de Comunicação (TV, rádio e internet)]. Temos um grupo de pesquisadores, um consórcio, que estuda o efeito das mudanças climáticas diretamente na saúde humana. Os relatórios do IPCC [Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas da ONU] dão conta muito da fome, da desertificação, da escassez de água, das catástrofes naturais, como inundações e secas, e da expansão das doenças transmitidas por insetos, porque, quando se tem chuvas torrenciais e muito calor, há a eclosão mais eficiente de larvas de insetos que transmitem doenças, como a malária, a dengue, a zika e assim por diante. O que nós estamos fazendo é usar grandes bases de dados de todo o mundo e do Brasil para saber como aquela cidade tem a saúde de seus habitantes afetada por variações de temperatura, seja a temperatura absoluta ou a velocidade com que ela muda. Isso tem dado subsídios valiosos para a identificação do que está acontecendo em termos climáticos e de anomalias do clima que impactam a saúde do ser humano. E o Brasil é muito bom para estudar isso, nós possuímos, na rede do Sistema Único de Saúde (SUS), dados de 1.840 cidades, de diferentes regiões, com distintas zonas de conforto climático; e há os dados de temperatura muito bons de superfície nessas mesmas localidades. Talvez seja o país mais adequado para isso, e existem variações regionais, índices socioeconômicos, de acesso a serviços. Então, temos estudado isso do ponto de vista de doenças cardiovasculares, respiratórias, as faixas etárias mais vulneráveis, e surgiu a ideia de pesquisar por alterações renais. Por quê? Nos períodos de calor, nós perdemos muito água por transpiração, e isso ocorre predominantemente com crianças, cuja perda de água precisa ser compensada por uma ingestão maior desse líquido, e com idosos, porque existe uma disfunção progressiva nos mecanismos que controlam a nossa temperatura interna; o termostato do idoso pode quebrar, os vasos ficam mais rígidos, por arteriosclerose, ou por diabetes, e existe ainda uma perda da sensação subjetiva de sede, ou seja, a pessoa mais velha pode desidratar muito sem sentir sede.

Chester Ho/Unsplash

BV — Além de ser um trabalho contundente por mostrar a ação direta das mudanças climáticas nas populações, o que mais esse estudo evidencia?

Dr. Paulo Saldiva — Sim, os dados são muito robustos, incisivos, e talvez tenha sido o país com o maior e pioneiro estudo focado [nesse assunto]. Não que sejamos melhores do que os outros, mas é que temos condições de realizá-lo, o Sistema Único de Saúde tem bons conjuntos de dados. No Brasil, há um grande número de pessoas com doenças renais ou vulneráveis a doenças renais por outros problemas, como acontece com a hipertensão, que faz com que o rim envelheça mais depressa. Outro fato que acho relevante nesse trabalho é que, quando se fala em mudança climática, geralmente se mostra o ecossistema, o lugar desertificado, uma floresta queimando ou as cidades derretendo, mas esse estudo traz para dentro da sua cidade, da sua janela essas variações, expõe que elas já estão ocorrendo onde vivem as pessoas que você ama, que não são para daqui a algum tempo. Essas alterações de clima, como secas prolongadas, chuvas, tempestades de poeira, que têm ocorrido em várias regiões do país, estão afetando o nosso corpo, a nossa saúde; não só adoecemos e morremos antes do tempo, como também isso custa muito dinheiro. A gente sabe quanto custa reduzir as emissões, mas não calcula bem quanto se gasta para manter as coisas do jeito que estão. E, agora, você pode fazer esse cálculo. Talvez isso leve os governantes a tomarem medidas que possam ajudar o Brasil não só a ser mais sustentável, mas também saudável, porque as duas coisas caminham uma do lado da outra.

BV — Que técnicas vocês utilizaram para concluir que o aumento da temperatura foi um fator direto para a incidência de doenças renais?

Dr. Paulo Saldiva — Primeiro, é barato e fácil, pois temos dados de internações diárias de 1.840 hospitais de diferentes regiões. Sabe-se que uma cidade do Nordeste ou do Norte tem uma variação de temperatura bem diferente da que ocorre no sul do país; então, a gente determina para cada lugar qual é a zona de conforto térmico e quais são os dias em que está fora do padrão, depois compara aquela cidade com ela mesma e faz uma estimativa geral por região. Tudo é feito com computador e modelagem. O que falta agora é ter as mitigações clínicas, o acompanhamento das pessoas com medidas mais detalhadas. Já temos informações suficientes para tomar medidas de proteção à saúde pública. Em outras palavras, a previsão do tempo que a gente sempre escuta dizendo: “Olha, fará tal calor, ou saia de guarda-chuva, ou saia de casaco” deveria ser colocada assim: “Você que tem doença renal, por favor, não se esqueça de tomar água, veja a cor da urina; se estiver escura, significa que está concentrada demais, está faltando água”. Assim, estaríamos usando um conceito que é bastante comum na produção pecuária, na produção de leite, porque o bovino também desidrata, para os cuidados desse bípede que somos nós, fundando, desse modo, a Sociedade Protetora do Ser Humano, que é o que estamos precisando: usar a meteorologia como instrumento de prevenção, para fazer a previsão de doenças a partir desses dados que nós forn

ecemos.

BV — No público analisado pelo estudo, quem está mais propício a sofrer de doença renal?

Dr. Paulo Saldiva — Mais as mulheres, porque já nascem com um nível de gordura corpórea maior que a do homem, [a Natureza as fez assim] para terem condições de produzir leite; as crianças abaixo de 4 anos, às quais deve-se ofertar muito líquido; e os idosos, que possuem o sentimento subjetivo de sede prejudicado.

PNUMA

Poluição ambiental está associada a quase um quarto de todas as mortes registradas no mundo anualmente.

BV — Que outras doenças devem se tornar mais frequentes com o aumento da poluição do ar e as mudanças climáticas até 2030 e 2050? A OMS tem essa estimativa?

Dr. Paulo Saldiva — Sem dúvida, as doenças cardiovasculares e respiratórias, além dos problemas do trato digestivo, principalmente diarreias, porque, diminuindo a quantidade de água, a qualidade dela também é reduzida. Pesquisadores estimam que as anomalias climáticas, sejam de ondas de frio ou de calor extremos, contribuam para 5 milhões de mortes prematuras adicionais por ano no mundo, [principalmente de indivíduos com mais de 65 anos]. O tema é tão importante que mesmo trabalhos simples, de baixo custo, conseguem entrar não em revistas ambientais, mas nas revistas médicas de alto prestígio, mostrando que a Medicina não tem o poder de controlar o clima, contudo pode dialogar com outras áreas e dizer: “Olha, nós estamos falando em nome daqueles que adoecem, a solução não está na caixa da Saúde, está em várias outras funções também”.

BV — Para que o planeta saia dessa zona de perigo, o ser humano precisa também mudar hábitos. Lembro que o senhor é um exemplo disso, pois há muito tempo adotou a bicicleta como meio de locomoção.

Dr. Paulo Saldiva — Há uma contribuição individual, muitos dos nossos hábitos determinam a nossa saúde. Existe uma geração que se acostumou com o uso do carro com combustível fóssil, e isso requer mais tempo para mudar. Mas eu vejo com esperança as novas gerações, que têm simpatia por causas ambientais, pela ideia de reflorestamento, de desenvolvimento sustentável. É muito mais clara a procura deles, porque já são educados em um cenário de crise ambiental. Acho que estamos fazendo um trabalho de longo prazo, e isso está sendo ajudado pela divulgação, como estamos fazendo aqui, que é para mostrar o seguinte: “Vamos tomar jeito, porque senão vai ficar pior”. (...) [Quanto à bicicleta,] eu já andava nela muito antes de entrar na área ambiental. Moro em São Paulo e acho que você conhece a cidade a partir das pessoas, dos personagens, dos pequenos comércios... E na bicicleta eu perco menos tempo para ir aos lugares que quero, aqueles que me dão prazer. Nela, a cidade deixa de ser um obstáculo e passa a ser um ponto de observação e de encantamento, como a gente faz quando anda a pé e percebe detalhes que de carro não consegue ver. Além do benefício psicológico, de reduzir a emissão de poluentes, de gases de efeito estufa, você está melhorando a sua saúde, diminui o índice de obesidade, melhora a coordenação neuropsicomotora, porque você tem de se equilibrar em cima da bicicleta e ganha de presente a observação do Jardim Zoológico do Criador, que está representado de forma muito completa nas ruas de uma metrópole como São Paulo.

BV — Dr. Paulo, fique à vontade para suas considerações finais.

Dr. Paulo Saldiva — Sendo bem objetivo, muito obrigado. Publicar o nosso trabalho em uma revista de impacto [na área da Medicina] é bom, mas não é suficiente, ele tem de ser traduzido em informação e em políticas públicas. Hoje, [com essa entrevista,] nós cumprimos uma parte dessa missão, graças à generosidade de vocês ao me concederem este espaço.