
Doação de órgãos | Pandemia reduz número de transplantes no Brasil e no mundo
A ABTO destaca que houve a diminuição de 13% dos doadores efetivos e de 24,9% de transplantados.
Leila Marco
03/02/2022 às 10h10 - quinta-feira | Atualizado em 07/02/2022 às 20h51

Um estudo publicado pelo jornal científico The Lancet Public Health aponta que o número de transplantes de órgãos no mundo teve uma queda de 31% em 2020, na primeira onda da Covid-19, em comparação a 2019. A pesquisa levou em conta informações de 22 países, em quatro continentes, revelando que 11.253 cirurgias desse tipo deixaram de ser realizadas nesse período.
No Brasil não foi diferente. A Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO) destaca que, durante o agravamento da pandemia no primeiro semestre de 2021, em relação ao mesmo período de 2020, houve a diminuição de 13% dos doadores efetivos e de 24,9% de transplantados. De acordo com a entidade, isso se deve a fatores como medo de que pacientes e doadores se infectassem com o novo coronavírus, a falta de leitos de UTI, além da redução na notificação de potenciais doadores em decorrência do distanciamento social, entre outros motivos.
Para falar dessas questões e incentivar a doação de órgãos, cujo gesto de Amor salva vidas, a Super Rede Boa Vontade de Comunicação (rádio, TV, internet e publicações) entrevistou o ex-presidente da ABTO, dr. José Huygens Parente Garcia. A seguir, os principais trechos da conversa.
BOA VONTADE — Com a disseminação da Covid-19 no Brasil, desde 2020, quais foram as maiores dificuldades enfrentadas pelos pacientes que aguardam na fila de transplantes?
Dr. Huygens Garcia — Esses dois anos de pandemia tiveram um impacto muito negativo na fila de transplantes. Ocorreu, não só no Brasil, como no mundo, uma diminuição da doação de órgãos em cerca de 30% durante os períodos críticos da crise sanitária, e, consequentemente, houve uma queda de 30% nos transplantes. Isso ocasionou uma mortalidade maior na fila de espera. Outro aspecto que preocupou muito toda a comunidade transplantadora do país é que os transplantados de fígado, rim, há 5, 10 anos, tiveram uma mortalidade pela Covid-19 cerca de 10 vezes maior do que a população normal. Nós perdemos, realmente, muitos pacientes transplantados para a doença.
BV — Levando em consideração que grande parte da população brasileira está vacinada contra a Covid-19, como está a situação neste momento?
Dr. Huygens Garcia — Essa pergunta é interessante, porque a gente viu claramente, a partir de setembro, e até por conta do Setembro Verde, várias campanhas para doação de órgãos no Brasil inteiro. A ABTO, outras entidades e o próprio Ministério da Saúde estão começando a ver a recuperação da doação em todos os Estados e, consequentemente, dos transplantes. Até o fim de 2021, não conseguimos os mesmos números de 2019, que foi o último ano sem pandemia, quando tivemos muitos transplantes no país. Esperamos que, a partir de 2022, com toda a população vacinada, volte a ter um número de transplantes adequado e, pelo menos, consigamos alcançar os dados de 2019.
BV — Quem recebe um órgão ganha a oportunidade de viver com mais saúde e bem-estar. Quais os cuidados que o transplantado precisa ter no dia a dia?
Dr. Huygens Garcia — O transplante de órgãos, como o de fígado, coração, pulmão e rim, devolve a saúde aos pacientes, a uma pessoa, por exemplo, que não podia trabalhar, que fazia hemodiálise três vezes por semana, que tinha uma cirrose avançando, uma doença cardíaca... Claro que é preciso acompanhamento permanente, porque eles usam drogas imunossupressoras para evitar rejeição. É importante criar hábitos saudáveis, fazer atividades físicas, não ingerir bebidas alcoólicas... O objetivo principal do transplante é que o paciente volte a trabalhar, retorne à família, ao contato social, com excelente qualidade de vida.
BV — Fazendo uma analogia com a cirurgia de transplante de órgãos com o ano que se iniciou, ambos representam um recomeço?
Dr. Huygens Garcia — Exatamente. Hoje temos no Brasil mais de 50 mil pessoas aguardando por um transplante de órgão, como o de fígado, coração, rim, pulmão, pâncreas e córneas. Esses indivíduos, realmente, quando chegam à fila de espera, têm esperança, perspectiva de uma vida mais saudável. Nós precisamos diminuir a taxa de recusa familiar à doação de órgãos no nosso país, que é muito alta, e a imprensa tem um papel fundamental nisso. Por exemplo, os últimos dados até setembro mostram que tivemos 40% de recusa. Ou seja, 40% das famílias de pessoas que tiveram morte encefálica, que é irreversível, não aceitaram a doação. Se isso não tivesse ocorrido, teríamos realizado 40% a mais de transplantes e, dessa forma, contribuído para resgatar a saúde e a qualidade de vida de milhares de pacientes.
BV — Quais órgãos podem ser doados em vida? E quem pode fazer isso?
Dr. Huygens Garcia — De uma maneira geral, o órgão mais doado em vida é o rim. Nós temos dois rins. Então, se for um paciente relativamente jovem, uma pessoa de até 55 anos, com boa saúde, sem diabetes e hipertensão, pode doar conscientemente para alguém da família, um irmão, tio, parente de primeiro grau. O fígado também, eventualmente, é possível doar uma parte dele. Tendo um fígado sadio, retira-se um segmento, dois segmentos, ou a metade desse órgão. Para isso, é feita uma avaliação bem rígida pela equipe [médica] para ver se aquele indivíduo tem condições de doar com segurança. Mas lembrando que mais de 95% dos transplantes realizados no Brasil são de doadores falecidos, indivíduos que evoluíram para a morte encefálica.
BV — É bom falar da importância da doação de órgãos. Qual o seu recado às famílias?
Dr. Huygens Garcia — Mais de 95% dos [transplantes] são financiados pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O programa é transparente, ético e com justiça social, sem nenhuma influência política ou econômica. O próprio paciente acompanha sua posição na fila de espera pela internet; não há risco de qualquer manuseio de forma indevida. Então, é importante que as famílias que, infelizmente, têm alguém que passou por traumatismo, acidente vascular cerebral — que é um diagnóstico feito com absoluta segurança, é irreversível, aqueles órgãos só estão funcionando por algumas horas, no máximo dias —, abram o coração, tenham Solidariedade e fiquem sabendo que há mais de 50 mil pessoas esperando por esse ato de Amor! Aquela dor que os familiares têm por perder o parente querido pode ser amenizada sabendo que ele permanecerá vivo em outras pessoas. A gente vê, claramente, que para diminuir essa alta taxa de rejeição familiar é necessário que todo cidadão afirme em vida a sua vontade, não precisa ser em cartório, mas precisa falar em casa: “Eu sou doador de órgãos”. Quando isso acontece, praticamente 100% das famílias [avisadas] concordam com a doação de órgãos.

Após diagnóstico de Covid-19, grávida faz parto de urgência e fica meses na UTI à espera de um órgão
Entre os que necessitaram de um novo órgão por causa da Covid-19 está Ana Raiana, de Natal/RN. Na 39ª semana de gravidez, ela foi diagnosticada com a doença e, quase em seguida, em 21 de maio de 2021, em decorrência de complicações, precisou realizar uma cesárea de urgência. “Com três dias de nascida, tiveram de levar a minha bebê para casa, porque ela recebeu alta, e eu não. Piorei cada vez mais, até ser transferida e passar pela terapia de oxigenação por membrana extracorpórea (ECMO). Fiquei 90 dias em ECMO acordada”.
Apesar de todos os cuidados, não houve a melhora esperada no quadro respiratório, restando apenas a opção de transplante pulmonar. “Eu estava há três meses na UTI e foi lá que conheci a minha bebê. Levaram os meus filhos para me ver. Foi um dia que não dá para esquecer nunca. Chegou 31 de agosto, e fui transplantada. Recebi meu pulmão novo, me recupero de acordo com o esperado, graças a Deus. Até hoje agradeço a Deus por essa família ter tido a compaixão de doar esse órgão, porque, se não fosse isso, não estaria aqui hoje.”
Depois de seis meses longe da família, Ana teve alta e pôde retornar ao seu lar: “Foi o maior presente da minha vida”, relembra. Para quem ainda tem dúvidas quanto à decisão de ser doador, essa mãe ressalta: “O transplante de pulmão me fez acreditar em uma nova vida. (...) Se tiver possibilidade de doar o órgão do seu ente querido, doe! Você estará eternizando a memória dele em outra pessoa. Foi por um órgão doado que a minha vida foi salva e hoje posso cuidar da minha família”.