Professora da UFRJ faz reflexões críticas da existência humana e ressalta o papel do pesquisador na preservação ambiental

Leila Marco e Alan Lincoln

16/11/2023 às 16h23 - quinta-feira | Atualizado em 17/11/2023 às 12h10

shutterstock

No fim da década de 1980, o educador e presidente da Legião da Boa Vontade, José de Paiva Netto, já advertia: “Educar. Preservar. Sobreviver. Humanamente também somos Natureza”. Anos depois, é de se louvar encontrar vozes da Academia do quilate da professora Marta de Azevedo Irving, especialista em desenvolvimento ligados às relações Sociedade-Natureza, inclusão social e governança democrática, evocar semelhante mudança de paradigma. Certamente essa forma de enxergar, de interpretar e e se relacionar com a vida no planeta venha da experiência mais ampla, que une conceitos que são aparentemente distintos, que a pesquisadora se dedicou a estudar com afinco. Marta é doutora em Ciências pela Universidade de São Paulo (USP), tem mestrado em Gestão Costeira pela University of Southampton, na Inglaterra, além de ser graduada em Biologia, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e em Psicologia, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente é professora dos Programas de Pós-Graduação Eicos/IP e PPED/IE e coordenadora da Cátedra de Sustentabilidade e Meio Ambiente do CBAE/UFRJ e pesquisadora sênior do INCT-PPED/CNPq.

Flávia Mattos

Marta de Azevedo Irving

Com toda essa trajetória profissional é que a professora Irving conduz o leitor — nesta entrevista exclusiva à revista BOA VONTADE — a vislumbrar novas visões de mundo, a fazer reflexões críticas da existência humana, ressaltando também o papel do pesquisador na produção do conhecimento aplicável ao dia a dia do cidadão. Vale a pena conferir e se contagiar com a emoção e crença que emanam das palavras da estudiosa, para quem esse despertar urgente que a humanidade precisa para um futuro melhor, sustentável e mais justo está, especialmente, nas mãos dos jovens.

BOA VONTADE — Por que é importante no processo de enfrentamento da crise climática rever valores?

Marta Irving — Quando se fala em educação ambiental, não é apenas um processo de informação, mas de formação da sociedade para um orbe em transição, no qual se busca a direção dos futuros desejáveis. Para isso, os valores são fundamentais. Não podemos mais viver como fazemos hoje, todas as indicações e pistas são claras de que esse modelo de desenvolvimento vigente caducou, está obsoleto, não serve mais diante dos problemas que temos de enfrentar no momento contemporâneo. Na verdade, precisamos resgatar das comunidades tradicionais valores ancestrais, a reconexão com a Natureza, visto que nos dissociamos dela no período pós-industrial. Muitos autores, atualmente, discutem o paradigma do bem-viver, de reconexão com o ecossistema, com o sentido de cidadania e de Solidariedade Planetária para um orbe mais justo, sustentável, para garantir possibilidades menos caóticas para as gerações que virão.

BV — A questão ambiental não pode ser enfrentada dissociada da vida em sociedade?

Marta Irving — Não é possível separar Natureza e Sociedade, elas são indissociáveis,
e também não podemos imaginar que a crise ambiental, stricto sensu, está dissociada das questões sociais, existe uma integração de tudo isso na vida cotidiana. Se não entendermos essa questão, não avançamos. A ecologia social é a própria produção de conhecimento que se consolida pela relação entre teoria e prática, então, o conhecimento se alimenta da prática. Isso significa aceitar e admitir que existem outras formas de conhecimento que não são as usuais, convencionais da Ciência, a cosmovisão dos povos e populações tradicionais, essa leitura do sagrado. Temos inúmeras racionalidades que estão em jogo, todas elas são legítimas. Fomos formatados para acreditar que só existe uma racionalidade, e que ela é alimentada pela lógica cartesiana e pela visão de mundo eurocêntrica. Esse é um mito que precisa ser desconstruído para avançar em novas possibilidades de interpretação, de leitura de horizontes desejáveis.

 

BV — Qual a ferramenta que pode ser grande aliada na educação ambiental?
Marta Irving —
A reconexão com a Natureza passa pelo lúdico, pela vivência com ela, não pela racionalidade, surge muito mais pelo sentido do afeto, do pertencimento, que se constrói pela sensibilidade, não pela razão. Eu penso que há algo errado nessa comunicação, seja pela Academia, seja pelo Jornalismo... Por exemplo, vivemos em uma cidade como o Rio de Janeiro, mergulhados nesse caleidoscópio de patrimônio, tanto em termos de culturas e naturezas e, mesmo assim, não nos despertamos para isso. O Rio de Janeiro é considerado Paisagem Cultural da Humanidade pela Unesco, mas ninguém no lugar sabe o que isso significa, alguma coisa não está certa. Temos de descobrir qual a lacuna desse elo de reconexão que ainda não foi atingido.

BV — A senhora falou do conhecimento milenar dos povos originários, da convivência harmônica deles com o meio ambiente. O que se pode aprender com eles?
Marta Irving —
 O primeiro ponto de vista a ser resgatado é que eles não vivem na Natureza, são a Natureza. Quando se resgata a questão do sagrado, da ancestralidade, das cosmovisões desses povos, essa categoria Natureza não existe, ela foi inventada por nós, que nos separamos do que é natural, essas populações não conseguem entender essa divisão artificial dos cidadãos ocidentalizados, urbanizados. Para esses grupos, a Natureza fala, dá indicações, só que, para entender o que ela diz, você tem que compreender quais são as formas de diálogo dela, e nós ainda não aprendemos isso, porque continuamos a entendendo como objeto de dominação. O que as sociedades industrializadas fizeram? Passaram a decodificar o natural como não valor, só tem valia no momento em que é explorado e transformado em algo possível de ser apropriado pelo sistema capitalista. Talvez tenhamos que aprender, em primeiro lugar, a ouvir, viver e sentir a Natureza e compreender que ela possui seus próprios ciclos e dinâmica, e que não cabe a nenhum de nós definir, ou tentar imaginar que irá dominar, porque não vai. A meu ver, talvez, essa seja a chave da mudança, que parece tão simples quando se fala, mas que é tão difícil de colocar em prática.

BV — Apesar da realidade gritante percebida no cotidiano das pessoas, com eventos extremos, a exemplo de fortes chuvas, enchentes, deslizamentos, ainda boa parte da população não quer
abrir mão do padrão de vida, do consumo que tem hoje. O que é necessário para virar essa chave?
Marta Irving —
Há vários elementos que se pode analisar, um deles é o imediatismo da vida cotidiana, vivemos em sociedades que desejam respostas rápidas. Você quer o 5G, não quer manter o seu celular na versão obsoleta de duas semanas atrás, ninguém consegue parar dois minutos para se alimentar.
Essa loucura, a vida frenética, a modernidade líquida do [Zygmunt] Bauman nos faz pensar que qualquer momento de reflexão é perda de tempo. A outra face do problema é a falsa ideia de que tudo acontecerá no futuro. Isso não vai ser para mim, não. Será para quem está nascendo agora. Trata-se de certa irresponsabilidade com as gerações que estão chegando e uma noção de que, pelo fato de ser atingido, não deve abdicar dos padrões de consumo que estão consolidados. Precisamos de tudo o que temos? A pandemia nos mostrou isso. Não adianta ter essa falsa ideia de possuir um milhão de coisas, porque o mundo pode lhe dizer que isso não serve para nada de um dia para o outro, sem fazer nenhum tipo de comentário purista, imaginando que os indivíduos não têm direito de ter uma existência melhor, mas que, na prática, vivemos em uma engrenagem que nos faz querer ter desejos cada vez maiores e diferentes. E eles não podem ser saciados, porque, se forem, a engrenagem para. Mudar comportamentos significa fazer escolhas e abdicar de alguns padrões. Quem vai querer deixar de lado os parâmetros que já conseguiu a fim de que o outro possa ter? Ou renunciar para que o mundo se equilibre? Isso está na base da discussão do Acordo de Paris; é uma questão ética profunda de até onde vai o meu direito, diante de um orbe em crise, com gravíssimos problemas que estão colocados na arena do debate.

 BV — Quais são os riscos de a humanidade continuar insistindo na visão mais individualista, de pensar só no agora? Isso terá um custo?

Marta Irving — Neste momento, os custos evidentes que estão na mesa são a emergência climática, que já se está sendo vivida de maneira brutal pelo orbe. Nunca poderíamos imaginar a dimensão dos fluxos migratórios, que estão acontecendo nesse pool de refugiados climáticos, para escapar dos problemas. Não tínhamos dimensão das instabilidades em todas as democracias do mundo. Isso não vem de hoje, ocorre há muito tempo. Se esse processo for adiado, em termos de soluções possíveis, os riscos só tendem a aumentar. Eu não conheço ninguém da área acadêmica que dirá o contrário. O que é escala temporal do risco? Acontecerá daqui a um ano, dois anos, 20, daqui a um milhão de anos... essa escala não temos com precisão, há estimativas baseadas em projeções de cenários. Mas, com tudo o que tenho de elementos da Ciência, eu diria que o quando é hoje. Não dá mais para adiar o problema, pois o risco é atual e futuro. A grande questão é o que isso representará como irreversibilidade, o que se discute no mundo acadêmico e qual é o ponto de virada? Porque agora os cientistas ainda advogam que é possível uma transição, uma mudança para a adaptação, pensando na resiliência, mas todos eles também apontam para um período de não retorno, que, se formos traduzir em português bem claro, é o caos com a guerra por água, por alimento em todos os lados e lugares (...) Se não tomarmos providências, no agora, o caminho natural é o caos, mas prefiro guardar a Esperança, acreditando que o ser humano tem a capacidade de despertar. (...) Eu vejo ocorrer na sociedade mundial iniciativas maravilhosas, que mostram que é possível mudar, só que elas não vêm para a mídia. Mas por que não é possível criar uma rede de experiências inovadoras, de ações que estão dando certo e mostrar que isso é viável? E também derrubar um mito de que pensar um planeta saudável e sociedades sustentáveis significa negar as opções de desenvolvimento, mas é exatamente o contrário.

BV — Ao longo da pandemia observamos que houve uma melhora da qualidade do ar, menos poluição nas ruas e nos mares, em razão da obrigatoriedade de isolamento que a humanidade enfrentou. O fato nos mostrou que, se mudarmos a nossa postura, a Natureza tem resiliência para se reinventar?
Marta Irving — Ela se renova, mas o tempo dela não é o nosso. Se as pessoas entenderem a fantástica capacidade de refazimento do meio ambiente, que também é a nossa habilidade de regeneração, nós, seres humanos, somos parte da Natureza, se entendermos isso, daremos passos incríveis na direção de outro mundo. Basta ver a Amazônia, uma área que foi desmatada brutalmente e, se ela é deixada em seu estado de recuperação, em menos de 10 anos, uma dinâmica vegetal e animal se reconstrói ali. (...) A Natureza continuará existindo, seja com emergência climática, seja com o que for, mas a sobrevivência do ser humano é que está em jogo. Nós nos esquecemos de que vivemos um processo de evolução de milhões de anos e que o ser humano pode não ser a última espécie dessa escala evolutiva. Podemos escolher a nossa própria extinção ou a nossa reinvenção como espécie nas décadas e nos milhões de anos que virão.

BV — Nesse universo de mudanças tão necessárias, qual o valor do fomento da inovação, tanto no aspecto científico quanto no social que leva em consideração os aspectos ambientais?
Marta Irving —
Total importância. A sociedade vive fragmentada, academia, movimento social, gestão pública, então, temos inovações aqui e ali, mas essas pontes não se constroem. O que eu imagino essencial no momento que vivemos é exatamente essa construção de conexões e diálogos entre esses diversos segmentos. O setor privado tem experiências extremamente interessantes como a logística reversa, de não gerar subprodutos da linha de produção. A tecnologia social, se fala muito pouco dela, e isso faz a diferença em diversas experiências no interior do Brasil e também nos grandes centros. Em cidades como Nova York já se produz alimento em grande escala. Por que não trazer o verde para as grandes metrópoles, os terraços, as coberturas dos edifícios e transformá-los em lugares mais lúdicos, prazerosos, simpáticos aos seus habitantes? (...) Hoje, a própria Academia está se reinventando, as universidades públicas são obrigadas a fazer o que chamamos de extensão universitária. Significa que temos de provar qual é o nosso papel social. Antigamente, o cientista vivia hermeticamente fechado na sua bolha, agora, isso não é mais possível no Brasil, na América Latina, a gente não tem mais essa ideia. (...) As tecnologias não precisam ser obrigatoriamente sofisticadas, existem as de baixo custo que poderiam ser utilizadas por muitos grupos e comunidades no mundo todo e que estão aí, meio no ostracismo, porque ninguém se dignou a colocá-las na pauta da visibilidade, do debate. Eu acredito na potência do movimento social e que a Academia tem muito a contribuir, mas esses atores da sociedade precisam ser iluminados por essas inúmeras possibilidades de difusão, divulgação, apoio financeiro e técnico.

BV — Quais são os principais caminhos a trilhar para tornar a educação ambiental mais acessível?
Marta Irving —
 Há um lado pouco posto em debate: a sensibilização pela via da Cultura. A gente não vê a integração de políticas públicas, ditas socioambientais, e políticas culturais. A Cultura é o caminho mais pulsante para que o ser humano aprenda e participe de todo esse processo, ela decodifica valores, permeia os modos de funcionamento da sociedade, define identidades, constrói e reconstrói essas identidades nessas esferas de vida, cria vias possíveis de sensibilização pelo afeto, pela sensibilidade, pelo lúdico. O Brasil é o primeiro país do mundo em recursos naturais, o oitavo em recursos culturais. Por que não utilizar essa potência para se transformar em líder desse processo de mudança? Eu advogo, veementemente, o papel nosso nesta liderança da transformação para os amanhãs desejáveis. Temos todas as condições para isso. (...) Vamos repensar essa visão de mundo a partir da ideia de que a Natureza somos nós e que podemos reconstruir sociedades baseadas em
outras premissas de desenvolvimento que não são essas, elas estão obsoletas, caducaram e não nos servem mais.