Pesquisadora ressalta os riscos iminentes da crise do clima

A professora Mercedes Bustamante aponta o papel do conhecimento científico na tomada de decisões como forma de combater os efeitos da crise do clima

Leilla Marco e Alan Lincoln

01/02/2023 às 09h33 - quarta-feira | Atualizado em 19/03/2023 às 19h39

As mudanças climáticas, que já provocam grandes perdas e danos para o ser humano e ecossistemas, geram impactos ainda maiores para as populações vulneráveis. Entre os pesquisadores brasileiros que estudam o tema está a professora do Departamento de Ecologia da Universidade de Brasília (UnB) Mercedes Bustamante, referência no bioma Cerrado e membro da Academia Brasileira de Ciências, do INCT Mudanças Climáticas e da Coalizão Ciência e Sociedade. 

Arquivo Pessoal

Mercedes Bustamante

Defensora da Ciência Cidadã, Mercedes destaca, em entrevista exclusiva à Super Rede Boa Vontade de Comunicação (TV, rádio, internet e publicações), os riscos iminentes da crise do clima, principalmente em territórios de extrema desigualdade social como o Brasil. Ela fala também da necessidade de se ampliar o acesso às informações de base científica, de modo a influenciar políticas públicas, promover a justiça climática e transformações positivas na sociedade.

Boa leitura!

BOA VONTADE — Tivemos recentemente a realização da COP27, no Egito. Apesar do esforço, vários impasses deixaram de ser decididos e não se chegou àquele ponto de bem comum de que tanto necessitamos. Por que isso acontece?

Mercedes Bustamante — Isso tem um pouco a ver com o próprio processo das convenções que estão ligadas à Organização das Nações Unidas, a ONU. Em geral, essas decisões das convenções têm que ser tomadas por consenso, e aí você tem centenas de países que partem de pontos muito diferentes de desenvolvimento, de dependência de combustíveis fósseis, que é o tema central para a discussão do clima, em termos de demanda para as suas populações em condições ambientais. Por isso, o consenso tem que ser alinhavado com bastante cuidado. Outro ponto também destacado para combater a mudança do clima é como se faz a mudança dos nossos sistemas energéticos, da nossa dependência dos combustíveis fósseis, porque estão em todos os aspectos da nossa vida, é o nosso celular, é a própria transmissão da energia... [Essas questões fazem] o tema ser bastante complexo, e tudo isso traz o que foi um ponto central da COP27: a questão do financiamento.

BV — Quanto mais postergarmos essas ações, mais elas serão custosas?

Mercedes Bustamante — Vários estudos apontam que o impacto das mudanças climáticas trará um ônus financeiro para todas as sociedades bem maior do que seria o custo de mitigar, ou seja, de reduzir as emissões e fazer essa transformação necessária. O último relatório do IPCC* também dá conta de que existem recursos financeiros, liquidez... Para isso, a questão é como se direciona e quem supervisionaria a aplicação desses recursos. Uma das preocupações é como realizar essa transição para que ela seja justa e equitativa. De que maneira fazer essa transformação sem aumentar as desigualdades no mundo, sem onerar aqueles que já pagam uma conta mais alta com esses eventos que estão associados à mudança do clima. Há duas COPs: a COP que envolve os negociadores, representando os governos, os países, e a COP com a participação da sociedade civil, das organizações não governamentais, das empresas privadas, que ocorre em paralelo. O que se percebe é a força desses dois movimentos, a sociedade pressionando os governos, e estes precisando tomar decisões que sejam possíveis dentro da sua esfera de influência política. Precisamos, cada vez mais, de cientistas políticos e sociais para entender esse processo, porque os cientistas do clima e da Natureza já deixaram bem claro qual é o problema.

BV — Qual a sua percepção como profissional da Ciência e da Educação sobre a aceitação desse tipo de alerta pelo público em geral?

Mercedes Bustamante — Parte dessa força que vem da sociedade civil — e eu acho isso bastante positivo — é do movimento de jovens, que têm muita clareza do que será o mundo que vamos deixar para eles. Essa parte de desigualdade também envolve a discussão entre as gerações. Eu percebo uma nova geração que vem com força e um ativismo consciente, bem-informada, que utiliza os dados da Ciência para sua argumentação. No caso do Brasil, as pesquisas que consultam a nossa população mostram que, de uma forma geral, os brasileiros se preocupam com o meio ambiente e o clima. Mas acho que o nosso povo não encontrou ainda um canal de expressar isso politicamente. Em várias partes do globo, em eleições recentes, tem-se percebido que a discussão climática começa a ter peso na escolha dos representantes, não só do poder executivo, mas também do legislativo. Vimos isso na Alemanha, nos Estados Unidos, na Austrália, em nações da América do Sul.

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BV — Quando se fala em mudanças necessárias para evitar uma crise climática ainda maior, essa nova postura deve ser adotada em todos os níveis de governança?

Mercedes Bustamante — Hoje está claro que os governos nacionais, que chamamos de governos centrais, sozinhos não resolvem essa crise. Eles têm um papel relevante ao dar a direção, pavimentando a via, mas o restante da sociedade, os governos dos Estados, dos municípios, das cidades vão ter esse papel, além do setor privado, pois essa é uma questão que já bateu forte nas empresas. Várias delas estão se associando a uma iniciativa de ter metas baseadas na Ciência, para ver se a redução das emissões é real ou não. Esses setores começam a se adequar, é essencial dar transparência aos compromissos, ou seja, não basta mais só um acordo no papel, a gente precisa ter ações concretas, porque metas de longo prazo exigem medidas de curto prazo. Então, temos que ser transparentes na contabilidade do que, efetivamente, está sendo feito e de um progresso real.

BV — Qual o papel da Educação neste momento desafiador? É importante resgatar o conhecimento dos povos originários, a maneira como lidam com o meio ambiente?

Mercedes Bustamante — A Educação tem papel central para o reconhecimento de direitos de territórios de povos originários, que hoje no Brasil são aqueles que mais protegem as áreas bem preservadas: povos indígenas, comunidades quilombolas, povos tradicionais, ribeirinhos, geraizeiros, juazeiros... há várias denominações que mostram a diversidade do nosso tecido social e como isso foi fundamental para manter a biodiversidade do nosso país. Resgatar essa história é extremamente importante; ela, de certa forma, foi apagada dos nossos currículos escolares. Isso é ponto de educação que pode contribuir bastante para dar clareza para as pessoas de como esses mecanismos são interligados e que o homem é parte desses mecanismos. Qual é a nossa responsabilidade, inclusive ética, com a conservação das outras formas de vida? O terceiro aspecto são as escolhas de consumo que fazemos, entender como o indivíduo pode contribuir. Quando a gente fala de um processo de transição justa, pensa quais serão os profissionais que essa nova economia irá precisar. Como é que a gente prepara a força de trabalho, que será a base dessa sociedade, para os chamados empregos verdes? Como docente, tenho a obrigação de olhar e dizer: A gente precisa preparar esses jovens para esse futuro, para essas novas capacidades [que serão necessárias].

BV — Quais são os principais desafios para os educadores disseminarem esse aprendizado às novas gerações?

Mercedes Bustamante — Vale dizer que aliado a essa transmissão de conhecimento é relevante pensar também na formação de valores. Uma das discussões essenciais é rever nossas atividades sobre outras bases, encontrar soluções para esses problemas complexos que demandarão diferentes visões do mundo. Então, tem de trazer essa diversidade, respeitar, porque respeitar é mais do que tolerar, não é só tolerância, não! Devemos respeitar e reconhecer que temos talentos de lugares diversos, com pontos de vista distintos, essa abertura para o diálogo que eu acho que, de alguma forma, foi se perdendo ao longo do caminho nos últimos anos e que precisamos resgatar dentro da Educação, preparando os nossos alunos para trabalhar mais colaborativamente. Hoje, a gente entende que não há uma única área do conhecimento que resolverá todas as problemáticas, não. Será necessário um sociólogo para dizer como é que as pessoas incorporam engenharia, como é que utilizam a tecnologia, que impacto a tecnologia tem na vida delas... Você precisa dos filósofos para entender ética, que permeia toda a nossa vida. (...) Não é só trazer toda informação, mas, efetivamente, é dar para o aluno ferramentas para traduzir esse conhecimento em ação concreta, efetiva e positiva. Isso tem a ver com valores.

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BV — De que forma essa visão multifacetada interfere na questão de justiça climática?

Mercedes Bustamante — Isso é um ponto central, e a gente vem discutindo o aumento da chamada litigância climática, cujas questões, efetivamente, terminam em tribunais, e a Justiça começa a interferir nessas discussões. Houve um caso recente em que a Austrália foi condenada por ter sido negligente no trato de questões do clima, o que afetou parte do país. Percebemos que isso acaba entrando para o aspecto cotidiano da Justiça, que é chamada litigância climática. O resgate da história mostra que a justiça climática está ancorada em questões circulares, o racismo estrutural, a discriminação de gênero... Todos esses assuntos retornam, aparecem de forma bastante clara na discussão do clima, pois certas populações vivem em áreas mais vulneráveis, porque elas estão alijadas do desenvolvimento social e econômico, desprotegidas pelo Estado, e acabam sendo mais impactadas.

BV — O último relatório do IPCC dá conta de que mais de 3,3 bilhões de pessoas vivem em locais ou contextos altamente vulneráveis à mudança climática. Essa é uma situação extremamente grave.

Mercedes Bustamante — Trata-se de alerta que temos de ter bem claro, o que isso irá significar de pressão para os governos e para os sistemas de suportes a essas populações. Esse número está associado às regiões chamadas de hotspots, áreas muito críticas à vulnerabilidade, que estão em uma situação socioeconômica mais precária e de degradação ambiental, onde há menos proteção contra os impactos desses eventos climáticos extremos e se concentram um enorme número de pessoas. É importante olhar isso, porque há grande potencial de se ter pressões sobre outras regiões que não são diretamente afetadas pelo impacto das migrações humanas. Hoje existe uma discussão de segurança climática e como isso se relaciona com a segurança humana, ou seja, quanto que a pressão sobre essas áreas irá implicar deslocamentos de populações, fluxos migratórios, para onde esses indivíduos irão? Como é que eles serão recebidos? Qual é a infraestrutura e o apoio que terão? E, ao mesmo tempo, a situação daqueles povos que não conseguem nem se deslocar para se proteger de situação mais crítica. Na última década, vivemos a experiência do que significam grandes fluxos migratórios, vimos os casos gerados por conflitos, como foi a guerra na Síria, mas que, de certa forma, começou com a seca extrema que gerou problemas sociais e desabou depois no conflito político. Também assistimos à crise migratória da Ucrânia, um fluxo enorme de pessoas se deslocando para outros territórios, e a como esse fato coloca em xeque a infraestrutura que temos hoje, o sistema de saúde, e isso acontecendo no meio de uma pandemia... É primordial a gente olhar essa convergência de crises, tornar a nossa sociedade mais resiliente, criar estruturas de acolhimento para lidar com crises múltiplas.

BV — Essa crise climática faz com que os governos tenham de olhar de maneira mais global para suas ações. Não se pode mais olhar os problemas de forma isolada, porque o que acontece no Brasil ou na Ásia impacta todo o sistema de equilíbrio planetário.

Mercedes Bustamante — Exato, estamos falando de uma mudança climática que é global, nenhuma parte do mundo permanecerá sem sofrer impactos. Estamos enfrentando essa crise com pontos de partida diferentes, é como se, durante uma tempestade, estivesse todo mundo no mesmo barco, mas há os que viajam na primeira classe e os que estão no porão. As pessoas sentirão essa tempestade de formas diversas, mas o barco é o mesmo para todos; então, a gente precisa se preocupar com a segurança dessa embarcação em que todos nós navegamos, que é o planeta. Os sistemas naturais se acoplam aos eventos; a dificuldade é como os sistemas sociais vão se acoplar a esses acontecimentos. Perdemos um pouco a perspectiva, mas [vivemos] o chamado Período Holoceno na história geológica da Terra. Os últimos 10 mil anos, que é o espaço de tempo de desenvolvimento da civilização humana, foi um período de extrema estabilidade climática. Quando comparamos com o passado, no qual se construiu em termos de civilização, contando com o clima bastante estável, e hoje a gente está mexendo nessa variável que foi tão fundamental, isso começará a ser, cada vez mais, um ponto a ser discutido, porque o que acontece na Amazônia não fica só na Amazônia, o que ocorre no Cerrado não fica só lá, tem consequências globais.

BV — No Brasil, como as pessoas podem se engajar mais, a fim de direcionar essa preocupação com o meio ambiente de modo que possamos ter resultados mais céleres, rápidos?

Mercedes Bustamante — Hoje, no nosso país, infelizmente, há grande quantidade de pessoas em situação de insegurança alimentar, passando fome. Trata-se de um problema crítico, que, precisamos lembrar, será mais preocupante ainda com a mudança do clima. É necessário combater a pobreza, porque não dá para separar a discussão da degradação ambiental da questão da saúde, da parte social... Temos de conectar esses pontos. Eu acho que a sociedade deve se engajar por meio das organizações não governamentais.

CBMSC/Divulgação

Canelinha, na Grande Florianópolis, foi uma das cidades alagadas de SC

BV — Recentemente tivemos chuvas acentuadas no Paraná, observamos que foram feitos alertas em dezenas de regiões de Estados, cidades, ao mesmo tempo e com grave potencial de impacto. Isso demonstra o sério momento que vivemos em termos climáticos?

Mercedes Bustamante — Exato, e isso nos faz lembrar da tragédia na região serrana do Rio de Janeiro em 2010, que levou o Brasil a criar o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), um dos primeiros trabalhos desse órgão foi mapear as regiões de risco geológico do país, de risco meteorológico, a fim de avisar as comunidades, mas isso foi uma situação de 10 anos. Será que hoje não temos de voltar e revisar? Será que temos de incluir mais regiões nessa situação de risco? Porque a gente está observando uma mudança nos padrões de precipitação, houve uma modificação no processo de ocupação urbana, então, revisitar essas questões tem que ser um trabalho constante, é necessário esse esforço de monitoramento e alerta. Outro ponto, quando se olha o caso do Paraná, é que se vê que a nossa infraestrutura é bastante dependente de transporte rodoviário. Sem a devida manutenção de estrada, sem o planejamento de estradas que levem em consideração a mudança do clima, viveremos novas tragédias como essa. São questões importantes também para as áreas urbanas; nós canalizamos os rios, modificamos as áreas de drenagem e, no caso de chuvas e eventos extremos, para onde irá essa água? Como que ela é drenada nas grandes cidades? E os resultados são as enchentes, que infelizmente custam vidas, são as tragédias anunciadas, e isso é muito triste. Lembro-me de que, em 2021, na região serrana, a gente ouviu alguns depoimentos na televisão, eu me emocionei, porque eram pessoas que estavam passando por aquilo, mas que tinham a lembrança de parentes que faleceram naquele evento de 2010. Ou seja, você vê várias gerações de famílias nessa situação e vivendo essas tragédias de forma recorrente, revivendo perdas, parece que é um luto constante... O que fazer para proteger a população, gerar uma solução efetiva, dar segurança a ela? A gente não pode deixar isso virar uma banalidade, se acostumar com esses fatos.

BV — Dentro de uma economia verde, qual é o valor de conhecer a origem dos insumos consumidos no país?

Mercedes Bustamante — Essas relações entre consumo e produção, produção e consumo estarão na ordem do dia nas relações internacionais. Os consumidores querem saber como o produto foi gerado, qual é o impacto dele, e eles também estão entendendo que a sua pegada ecológica vai além das suas fronteiras. Quando a gente importa produtos de outros países, há uma responsabilidade com o sistema de produção desses locais, da mesma forma como quem vai importar produtos do Brasil. Precisamos, de fato, de mecanismos de transparência, que deixem bem claro a rastreabilidade do produto. O que eu consumo vem de áreas de desmatamento? Está impactando direitos humanos ou direitos territoriais?  O que estou consumindo está relacionado com a mão de obra infantil, a exploração de pessoas? Então, essas questões, todas elas vão estar à mesa. O último relatório do IPCC, pela primeira vez, trouxe um capítulo totalmente dedicado ao setor de demanda, mostrando como o papel do consumidor pode influenciar na redução das emissões de gases de efeito estufa.         

 

 

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* IPCC — A terceira e última seção para o sexto Relatório de Avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da ONU, divulgado pelos cientistas em 4 de abril de 2022, é uma referência a respeito da produção de pesquisa mais atual sobre o tema, destacando que a humanidade tem três anos para fazer reduções imediatas e em grande escala de emissão de gases de efeito estufa em todos os setores-chave, a fim de limitar o aumento da temperatura global em 1,5 °C, conforme foi definido pelo Acordo de Paris, para evitar uma crise climática com consequências irreversíveis para nosso orbe, de forma a atingir o pico das emissões até 2025 e reduzir 43% até 2030.