Perigo climático

Pesquisador do Cemaden ressalta a importância de se estar atento a alertas de desastres naturais, como alagamentos e deslizamentos, para salvar vidas

Leilla Marco e Alan Lincoln

16/02/2024 às 09h19 - sexta-feira | Atualizado em 16/02/2024 às 15h11

REUTERS/Esam Omran Al-Fetori

Enchentes na Líbia deixam mais de 5 mil mortos e 10 mil desaparecidos.

A fim de que a sociedade entenda a importância dos desafios climáticos e possa cuidar melhor do meio ambiente, colocando em prática iniciativas preventivas, a seção “Biosfera” desta revista, em parceria com a Boa Vontade TV, tem entrevistado cientistas de renome. Nesta edição de fevereiro, o nosso convidado é o climatologista Christopher Cunningham, pesquisador na área de meteorologia do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), órgão ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (Mctic).

Emmanuel Fernandes

O climatologista Christopher Cunningham é entrevistado pelo repórter Alan Lincoln para a Super Rede Boa Vontade de Comunicação

Na conversa, ele explicou que a ação humana, especialmente a partir da Revolução Industrial, já provocou mudanças significativas no clima do planeta. Trata-se de uma realidade flagrante, basta ver o que revelou o relatório do observatório europeu Copernicus, divulgado em 9 de janeiro: 2023 foi o ano mais quente já registrado na Terra, com média de 1,48ºC acima do nível pré-industrial (entre 1850 e 1900), o que pode mostrar que o planeta se aproxima do chamado “limite seguro” de 1,5ºC, definido pelo Acordo de Paris*. Tudo isso sob o chapéu do fenômeno El Niño, que, desde junho passado até a data atual, tem agravado esse aquecimento e provocado estragos em diversas partes do globo e no Brasil.

Vale dizer que, pouco tempo depois desse bate-papo, o Rio de Janeiro/RJ viveu um fim de semana dramático, que começou na sexta-feira (12/1) e se prologou até domingo (14/1), em decorrência do forte temporal que alagou vias e afetou o metrô e linhas de ônibus na zona norte e em alguns pontos da região metropolitana da capital fluminense, levando à morte 12 pessoas. Quarenta e oito horas após o país contar os estragos no Rio de Janeiro, em 16 de janeiro, foi a vez de o Rio Grande do Sul ter pelo menos 29 cidades do Estado com registros de danos causados pela chuva e ventos intensos, tendo sido atingido com granizo Porto Alegre/RS, onde um homem morreu e mais de um milhão de moradores ficaram sem abastecimento de água e vinte bairros sem energia elétrica. Da mesma forma, na sequência, Belo Horizonte/MG, o litoral do Paraná, o litoral norte de São Paulo e a Baixada Santista também vivenciaram sérios problemas com a chuvarada.

Durante a entrevista, Christopher ressaltou a relevância de se preparar para reagir aos novos riscos climáticos, destacando a importância de se estar atento às previsões meteorológicas, como os alertas de desastres naturais emitidos pelo Cemaden, para possíveis alagamentos e deslizamentos, a fim de salvar vidas e reduzir a vulnerabilidade social e econômica desses acontecimentos. Leia, a seguir, os principais trechos.

BOA VONTADE — O Brasil e o mundo têm experimentado um aumento de eventos extremos. Nesse contexto, o que o fenômeno El Niño pode ainda provocar?

Cunningham — É um tema complexo, por isso mesmo vale estarmos aqui dialogando, debatendo, tentando abordá-lo de vários aspectos. O clima é um fenômeno natural que ocorre dentro de uma variabilidade climática, uma certa característica, de uma definição matemática quanto, principalmente, à temperatura e à precipitação de certas regiões. Essas definições são feitas avaliando o passado, os registros históricos, nos quais se vê a sequência que defina uma determinada estabilidade daquele local. Por exemplo, a gente sabe que a Amazônia, há milhares de anos, tem mais ou menos uma estabilidade e que há oscilações dentro disso. A Floresta Amazônica é úmida e quente, mas há anos em que ela é mais úmida, mais quente. Enquanto essas variações são naturais, chama-se isso de variabilidade natural. Uma dessas variações foi descoberta na década de 1980, é o El Niño, que é um fenômeno de resfriamento e de aquecimento da região do Oceano Pacífico. Como ele é o maior oceano que se tem, esse resfriamento, aquecimento, é uma oscilação importante. E estamos em um estado de aquecimento acima da média, exacerbado, esse excesso de calor interage com a atmosfera e vai gerar mais chuva. (...) Pela área do Pacífico ser muito grande, o fenômeno acaba atingindo vários pontos do planeta. No Brasil, o El Niño deixa o leste da Amazônia, o norte do Nordeste, o semiárido do Norte e os Estados do Rio Grande do Norte, da Paraíba, de Pernambuco e do Ceará em uma condição mais propícia para chuvas abaixo da média, ou seja, pouca chuva. Já na Região Sul — no Rio Grande do Sul, em Santa Catarina e no Paraná — e também nos países que fazem fronteira com o Brasil — Paraguai, Uruguai e Argentina — tende a ter mais chuva.

BV — Vários alertas têm sido trazidos pelos cientistas quanto ao aumento da temperatura média global. Quais os riscos que enfrentaremos?

Cunningham — Os relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) são excelentes instrumentos de trabalho para a gente estimar isso. O que se pode dizer é que há um crescimento paulatino e a emissão de CO2, gás do efeito estufa, aumentou numa escala colossal a partir da Revolução Industrial. Nós usamos o petróleo, o carvão mineral, e, ano após ano, década após década, isso está elevando a temperatura média da atmosfera. Até 1950, na pré-Revolução Industrial, o clima era considerado estável, e isso foi mudando. (...) O CO2 tem um tempo de atuação na atmosfera; alguns estudos científicos mostram que esse aumento [que ocorre atualmente] não é por causa do CO2 que estamos depositando agora, é o que foi jogado na atmosfera há algumas décadas. Por isso, estima-se que ainda continuaremos nessa progressão. Teria que haver iniciativas de Bioengenharia para tentar tirar o carbono da atmosfera. (...)

O mais difícil é chegarmos a acordos em escala mundial que sejam cumpridos. Os riscos são reais, não posso estimar quão graves são; os cientistas usam uma ferramenta chamada modelo, e há uns bastante complexos, eles precisam de um supercomputador para rodar. Esses modelos são excelentes, mas não são livres de erros, carregam incertezas, porque estão fazendo uma projeção bem para a frente. (...) Há estimativas do grau de dano com aumento de frequência de eventos de chuva extrema, de secas mais intensas... Esses modelos são uma imitação da atmosfera, eles têm toda a parte das leis físicas que regem a atmosfera e os outros sistemas climáticos, como o solo, na questão dos biomas, dos oceanos, do gelo... Então, carregam isso de forma matemática. A gente já vem sofrendo esses efeitos que eram esperados para 2030.

 

BV — Algum aspecto observado nos últimos anos surpreendeu por exceder o que havia sido previsto?

Cunningham — Acredito que as ondas de calor. Houve uma em setembro de 2023 e depois outra em outubro. Agora, ocorreu uma menos intensa nas primeiras semanas de janeiro. Essa é uma temática que, particularmente no Brasil, o cientista tem dado destaque nos estudos a partir de 2000. Enquanto no hemisfério norte, na Europa, esse é um problema mais antigo, até por conta da distribuição de continente e oceano. (...) Os Estados Unidos e a Europa, por serem lugares mais frios, também sofrem, porque as casas nesses países não são de alvenaria, são de madeira, justamente para suportar melhor o frio; então, fica mais difícil retirar o calor [dos ambientes] e de se refrescar. No Brasil, estudos do IPCC têm mostrado que as ondas de calor são um dos eventos extremos que podem se tornar mais frequentes, chegando a temperaturas altíssimas. A onda de calor que passamos em setembro foi avassaladora. (...) Vínhamos de um período muito seco, com pouca umidade, e o solo acabou perdendo ainda mais umidade com essa insolação. Essa onda de setembro foi uma das piores, a temperatura do ar ficou muito alta, e a insolação aumentou também.

BV — A seca enfrentada na Região Norte do país, na Amazônia, ao longo dos últimos seis meses de 2023 está ligada também ao El Niño?

Cunningham — Esse evento foi caracterizado por episódios extremos. Os rios na Amazônia são muito grandes, difíceis de secar, mas alguns de menor porte, de fato, ficaram secos, o que muda todo o ecossistema; as populações originais são bastante afetadas. Ainda não existe uma análise conclusiva a respeito do que aconteceu, provavelmente tem a ver com essa questão do período de estiagem. Na Amazônia, ao norte, no Estado de Roraima, mais ao sul, chove quando aqui [no Sudeste] está seco, isso mais ou menos de junho a agosto. Mas esse período foi deficiente [no último ciclo], eles já passaram pela estação chuvosa deles de forma deficiente, e esse foi um dos efeitos. À medida que as precipitações vão migrando para o sul, pegando o Estado do Amazonas, o centro dele e o do Pará, indo para a Região Sul, observou-se a mesma deficiência. O El Niño estava iniciando e ganhou força rapidamente. Existe um temor agora, porque os rios estão subindo de novo, os mananciais estão começando o processo da estação de cheias. Aqueles rios que chegaram a secar e minimizar [em 2023] estão aumentando o volume, só que, em termos de comparação com outros anos, estão na parte baixa da curva, no mínimo. A preocupação é que talvez eles não ganhem quantidade suficiente de água para passar o próximo período seco.

BV — A ação humana está potencializando o El Niño?

Cunningham — A temperatura é uma variável fundamental, e as plantas funcionam muito reguladas por ela e pela umidade do ar. O desmatamento que estamos fazendo na Amazônia é bastante preocupante, porque, ao desmatar, você faz a substituição de uma mata nativa, que possui alta capacidade de abaixar a temperatura, como as florestas tropicais, cujas árvores são enormes e têm uma biodiversidade absurda. E, se não tiver aquela vegetação, há muita energia solar. Desde a década de 1970 até agora, tem sido feita essa substituição, sistematicamente, da Floresta Amazônica por pastagens, que têm uma característica, um comportamento completamente diferente, porque são bem mais quentes, não conseguem reter a umidade. As árvores trabalham justamente como se fossem pequenos retentores de umidade, por terem raízes muito profundas se comparadas com um campo, digamos assim. A gramínea pegará a umidade só na camada mais superficial e, depois, começa a secar; já a árvore possui bem mais resiliência, por conseguir capturar a aquosidade de porções mais profundas, com isso, regula o ambiente. A biodiversidade também atua nesse sentido. Nós afetamos o ecossistema de forma dupla ao tirar as grandes árvores, cujo crescimento é feito capturando carbono da atmosfera. Então, a Floresta Amazônica captura bem mais carbono do que uma pastagem, que tem uma menor resiliência e rapidamente esgota a capacidade de fixar carbono. Por outro lado, isso muda a característica do solo, de maneira que torna aquela região mais propensa ao excesso de calor, à falta de umidade.

BV — O Brasil precisa estar atento à questão da adaptabilidade para a nova realidade de extremos climáticos?

Cunningham — Temos que estar organizados para enfrentar situações de extremos climáticos, que se repetem com mais frequência. É possível, por exemplo, que no próximo ano tenhamos que estar preparados para uma onda de calor de maior magnitude e para as questões de eventos severos de tempo, chuvas mais intensas, que é um dos trabalhos do Cemaden, no sentido de tentar antecipar essas condições que são deflagradoras de desastres, como deslizamentos, enchentes rápidas e enxurradas.

BV — No passado recente, tivemos crises de abastecimento de água em São Paulo e no Rio de Janeiro. Existe risco de sofrermos novamente com esse problema em regiões de alta densidade populacional?

Cunningham — Esses eventos foram, respectivamente, em 2013 e 2014. As estações chuvosas na Região Sudeste, no Centro-Oeste, são sempre na virada do ano. No momento, ela está deficiente. Até agora, há uma configuração um pouco melhor no litoral da Bahia, mas, se pegarmos a grande área continental, os Estados de Mato Grosso, de Mato Grosso do Sul, de Tocantins, as chuvas não estão no volume necessário. Então, sem dúvida, é possível que ocorra novamente. Temos de estar preparados. E é por isso que o Cemaden e outras instituições científicas trabalham em cima dessa questão, porque, por serem regiões de maior Produto Interno Bruto (PIB), o impacto é maior, carrega as dimensões socioeconômica e socioambiental.

BV — De que forma podemos nos organizar para este ano, no qual existe a possibilidade de ocorrerem eventos extremos mais intensos do que os experimentados em 2023?

Cunningham — A melhor maneira é se manter antenado. Temos hoje em dia bons mecanismos de previsão e diversas escalas de tempo no celular para saber como será o dia de amanhã e depois, o que atende a certas necessidades. A partir desse prazo, começamos a chamar de uma previsão de tempo estendida, que vai mais ou menos até uns 5, 7, 10 dias, dependendo das condições atmosféricas. Um segundo passo é a questão da escala subsazonal, que vai além dos 10 dias, algo em torno de um mês. Após isso, entra a previsão sazonal, que trata das características de variação média entre as temperaturas mínimas e máximas mensais, ao longo de um ano. Por exemplo, todos os meses são feitas previsões sazonais para a qualidade da estação chuvosa no Brasil. Aí, a indicação é para o tomador de decisão; tudo isso é de uma complexidade elevada, e a população em geral precisaria ser instruída [sobre isso] para entender o que essas previsões querem dizer, pois elas têm características próprias. Mas os tomadores de decisão, em geral, já vêm atuando dessa forma, que é usar as previsões de acordo com a sua finalidade e também respeitando as limitações, ou seja, são previsões e não são perfeitas, possuem incertezas.

 

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* O limite de 1,5ºC foi definido pelo Acordo de Paris, que é um tratado internacional sobre mudanças climáticas mediado pela Organização das Nações Unidas (ONU), adotado em 2015. Ele compreende mitigação, adaptação e financiamento das mudanças.