Ondas de calor no Brasil

O professor Sérgio Besserman fala do impacto das mudanças climáticas na saúde e da possibilidade de o país ter papel de destaque na virada sustentável

Leila Marco e Alan Lincoln

13/10/2023 às 06h30 - sexta-feira | Atualizado em 17/10/2023 às 14h06

Uma onda de calor assolou boa parte do território brasileiro, com direito a máximas próximas a 40oC e, em algumas cidades, atingindo até marcas superiores a essa, no fim do inverno e no começo da primavera deste ano. O período em questão superou valores médios de referência para a mesma época nos últimos 30 anos, e há boa possibilidade de se repetirem em outubro e novembro. O grande vilão de 2023, que está especialmente quente, é o fenômeno El Niño. Ele muda a circulação de ventos em vários níveis da atmosfera, alterando o trajeto das frentes frias na América do Sul, dificultando que elas cheguem ao Brasil. O El Niño também interfere no regime de chuvas que, sendo menor, impede a regularização da temperatura.

Divulgação

Sérgio Besserman

Além de todos esses fatores, o economista Sérgio Besserman — coordenador estratégico do Climate Reality Project Brasil, professor do departamento de economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e presidente do Jardim Botânico do Rio de Janeiro — chama a atenção para o contínuo aumento da emissão dos gases do efeito estufa nas últimas décadas. Segundo o especialista, se nada for feito urgentemente, essas alterações climáticas se tornarão ainda mais fortes, sendo responsáveis por ceifar milhares de vidas, provocando uma série de problemas na saúde humana e punindo economicamente os países, em especial, as populações mais vulneráveis. Para o Brasil, o pesquisador defende um papel de protagonismo no cenário de transformação que o planeta precisa, destacando o compromisso com a Amazônia no alcance da meta de desmatamento zero, além da adoção de biotecnologias e de políticas públicas que visem a uma progressiva arborização das cidades.

BOA VONTADE — Há uma mudança acelerada do clima, com ondas de calor em diversas partes do mundo. Por que isso está acontecendo?

Sérgio Besserman — Nos últimos três anos, ondas de calor fortíssimas e que não eram previstas, porque estávamos ainda sob [a influência] da La Niña, fenômeno climático-oceânico, quando as águas do Pacífico ficam mais frias, mas, mesmo assim, a Costa Leste dos Estados Unidos, a Europa, a Índia, a China, sofreram com ondas de calor recordes. Agora, com o El Niño, que esquenta as águas do Oceano Pacífico, e há possibilidade que seja um super El Niño, em um contexto em que o Oceano Atlântico do Norte está tão quente, como nunca esteve antes nos últimos cem mil anos. Estamos todos muito preocupados com a possibilidade de os efeitos do aquecimento global terem sido mascarados pelo La Niña, de algo estar acontecendo, um sistema bem complexo nos oceanos, que pode ser uma ruptura do sistema temático do planeta. Medidas de proteção aos mais vulneráveis, adaptações são extremamente necessárias para nos preparar para o verão que vem aí.

BV — É possível ainda evitar o aumento de 1,5ºC na temperatura média global ou com o El Niño mais forte esse marco será ultrapassado?

Sérgio Besserman — Certamente, se não for agora, nos próximos anos vamos bater 1,5ºC, e é quase certo que isso se dê neste ano. Mas ainda não entramos na temperatura média do planeta em 1,5ºC, é como se fosse uma febre, chegamos a 40ºC, mas depois volta. Mas a Terra caminha, se nada for feito, para que a temperatura média dela seja 1,5ºC a mais. E isso é gravíssimo. A humanidade ainda não conseguiu entrar em um ritmo de mudança que nos dê o mínimo de segurança para não ultrapassar essa marca até 2100. Há 30 anos, desde a Rio-92, temos ratificado essa necessidade, (...) mas, infelizmente, ainda não conseguimos entrar em uma rota para atingir a meta que é quase imperativa. Temos de começar a correr mais do que um leão para isso.

BV — Estudos fazem uma correlação de períodos de calor intenso na Europa e a morte de mais de 61 mil pessoas em 2022. Esses números podem se tornar mais graves?

Sérgio Besserman — Sim, no próximo verão. Não quer dizer que os anos seguintes serão igualmente ruins, estamos no contexto de um El Niño e, quase certo, forte. Tomara que venham tempos melhores 3, 4, 5, 6 anos, venham sem tanto desastre, mas não é o mais provável. Isso implica na necessidade de iniciar de fato a transição [da matriz energética mundial] para a retirada dos combustíveis fósseis, hoje se gasta quase um trilhão de dólares no mundo para subsidiá-los. Além de eliminar esses subsídios, tem de parar também; não precisamos mais de petróleo, carvão... o que tem está bom, usa-se eles no transcorrer da transição. No caso do Brasil, a providência maior é diminuir até se chegar ao desmatamento zero da Amazônia. Depois, a produção agrícola do Cerrado, utilizar técnicas científicas, produtivas, com mais biotecnologia e menos química, porque essa é a nossa segunda fonte de emissões de gases do efeito estufa. Em nosso país os transportes urbanos também têm que mudar, o ônibus tem que ser elétrico, transporte coletivo etc. Num prazo curto, temos de nos preparar para proteger os vulneráveis, no caso do calor, os idosos, especialmente, e aqueles territórios onde as temperaturas são mais elevadas. As pessoas idosas têm pouca sensibilidade, ficam desidratadas sem sentir muita sede. É necessário realizar campanhas de publicidade na televisão, nas redes sociais e despertar a Solidariedade entre os indivíduos para fazer esse alerta aos outros. O Rio de Janeiro, por exemplo, é a capital no país com a maior proporção de pessoas com mais de 60 anos, boa parte delas morando sozinhas, precisando de atenção nesse sentido.

BV — O que se pode esperar do próximo verão?

Sérgio Besserman — Um risco de temperaturas acima do que estamos habituados, exigindo cuidados, Solidariedade, medidas de políticas públicas de saúde e outros, [para enfrentar] o que há de risco. No passado, a gente estudava doenças de calor muito alto, aquelas ligadas a mudanças do clima, bastante focado em inundações, leptospirose, necessidade de vacinas contra tétano, enfermidades vetoriais, como as transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti, especialmente, porque com bastante chuva aumenta o número de casos de dengue, zika, chikungunya. Hoje, sabemos também que picos de calor estão fortemente correlacionados à incidência de infartos, Acidentes Vasculares Cerebrais (AVCs) e até a violência, as pessoas perdem um pouco da capacidade de controlar o impulso. Então, em alguns territórios maiores, as unidades de clínica de família têm de estar preparadas, com protocolos já determinados, para receber esses pacientes. Há países que estão criando unidades de resfriamento, locais em que se mantêm o ar-condicionado baixinho, que permite que os mais vulneráveis desses lugares possam ir para lá dormir.

BV — Qual o custo dos eventos climáticos extremos, como o ciclone que ocorreu no Rio Grande do Sul?

Sérgio Besserman — O argumento que diz: “Eu não posso interromper o crescimento econômico, o consumo, porque vai prejudicar os mais pobres”, é de certa forma uma hipocrisia. Na verdade, diversos estudos demonstram que o custo do aquecimento global é bem maior do que o valor gasto para o seu enfrentamento. E o que é pior, essa despesa não é distribuída normalmente, ele afeta principalmente os mais vulneráveis, aos mais pobres, as populações vítimas de racismo. Em Houston, uma cidade riquíssima nos Estados Unidos, caiu a luz por causa das mudanças climáticas, isso tem uns dois, três anos. Onde é que demorou mais para voltar a luz e a água? Nos bairros da população negra e nos da população Latina, mexicanos, brasileiros, centro americano etc. Assim ocorre no mundo todo. Tem outro lado da moeda que só existe aqui. (...) O Brasil é o único país que, se o mundo realmente resolver combater o aquecimento global para evitar essa tragédia anunciada, nós ganhamos competitividade na economia mundial, por várias razões. Para nós, não emitirmos gases do efeito estufa é fundamental reduzir o desmatamento da Amazônia. É dificílimo, mas é mais barato do que qualquer outra ação, do que fechar uma usina termoelétrica. Temos capacidade também de gerar energia elétrica (que não é fator de emissão de gás de efeito estufa), mas poderia ser ao menor custo que qualquer outro país, com a energia elétrica produzida a partir da luz solar, da energia eólica [que transforma em eletricidade a força do vento]... (...) Podemos, sem desmatar um milímetro a mais, só usando pastos degradados, recuperar esses solos biologicamente e produzir alimentos a baixo carbono, biocombustíveis e materiais, graças ao avanço da biotecnologia. Além de trabalhar pela arborização das comunidades, o que já garantiria a redução de 2, 3 graus, nas cidades, evitando gastar energia com ar condicionado e outros eletrodomésticos.