A Natureza que protege

O pesquisador Pedro Côrtes fala da importância de cuidar dos recursos naturais, como as florestas, para combater a crise climática e garantir água, saúde e um futuro sustentável

Leilla Marco e Alan Lincoln

22/03/2023 às 14h03 - quarta-feira | Atualizado em 22/03/2023 às 21h06

Unsplash/Matthew Smith

Um dos desdobramentos das mudanças climáticas e da poluição nos rios e lagos é a redução da superfície de água no Brasil que vem se observando nos últimos 20 anos. Apesar do alento oferecido com a melhora no cenário em 2022, o fato não é motivo para a sociedade deixar de lado os cuidados com esse líquido sagrado, que tem relação com todas as áreas da vida humana.  

IEA/USP

Pedro Luiz Côrtes

Neste 22 de março, Dia Mundial da Água, instituído pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1992, o pesquisador Pedro Luiz Côrtes, professor do programa de pós-graduação em Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente (IEE), da Universidade de São Paulo (USP), alerta sobre questões essenciais que envolvem os recursos hídricos. Ele ressalta como o desmatamento de nossas florestas, em especial da Amazônia, tem contribuído para essa escassez e como ter acesso à água e ao saneamento básico é fundamental para combater a pobreza e garantir saúde e um futuro mais equilibrado com o meio ambiente. O professor afirma ainda que a reconstituição de florestas degradadas pode ser a resposta para a redução dos gases do efeito estufa que estão desregulando o clima, que causam não só transformações na temperatura, como também na intensidade das chuvas e eventos climáticos extremos, como furacões e ondas de calor devastadoras. 

BOA VONTADE — Por que em um país como o Brasil, com enorme riqueza hídrica, sofre-se tantas dificuldades no abastecimento, principalmente nos maiores centros populacionais?  

Pedro Côrtes — O primeiro motivo é a poluição. Boa parte da coleta de esgoto no país, na verdade, é só o afastamento do esgoto das residências, pois ele é lançado nos rios, nos lagos, sem qualquer tipo de tratamento. Comprometemos, já de saída, a possibilidade de uso dessa riqueza hídrica, porque as águas com esgoto residencial e efluentes industriais tornam o processo de limpeza difícil, sendo muito caro fazer isso, o que dificulta o seu aproveitamento. E essa questão não está restrita apenas aos grandes centros urbanos, estamos vendo essa tragédia na Terra Indígena Yanomani, onde há diversos cursos da água contaminados pelo mercúrio, o que impossibilita o aproveitamento das águas, dos peixes, porque esse é um elemento altamente contaminante, é um neurotóxico. Isso remete a um triste episódio na década de 1960, na Baía de Minamata, no Japão, em que uma vila de pescadores começou a apresentar sérios problemas de contaminação por esse metal, porque uma indústria lançava nela efluentes contaminados, o que fez com que crianças nascessem  com uma série de problemas neurológicos, com deficiências, deformidades em função da contaminação por mercúrio.  

BV — Há outras questões que interferem no abastecimento? 

Pedro Côrtes — Sim. As mudanças climáticas vêm alterando a distribuição das chuvas ao longo do tempo, ela começa mais tarde do que o previsto e não ocorre de maneira homogênea, não temos uma frequência, de forma que chova um pouco por dia, acaba acontecendo uma precipitação de maneira concentrada. Chove bastante numa região, e noutra, não, e isso acaba criando um sério problema. A chuvarada em uma localidade não é necessariamente favorável à recarga dos aquíferos, porque as camadas superficiais do solo ficam rapidamente encharcadas, e elas não permitem que o adicional do líquido que está caindo penetre no subsolo e vá, aos poucos, hidratando, recarregando os aquíferos. Então, várias vezes essa chuva excedente não se traduz em uma maior disponibilidade de água. E aí, um dado importante: é o aquífero que permite a recarga dos rios, dos lagos, das represas. Quando nós estivermos no período de estiagem, por exemplo, essa água do subsolo vai, aos poucos, caminhando em direção a esses corpos da água, abastecendo-os. É uma recomposição secundária, mas importante para a manutenção do nível. Além de termos aqueles episódios dos rios que não comportam esse volume excedente, com enchentes, inundações, alagamentos, tempos depois, temos, algumas vezes, a baixa disponibilidade de água, embora em alguns locais a chuva tenha ocorrido com bastante intensidade.  

BV — Quais lições ficaram da crise hídrica que São Paulo viveu de fevereiro a dezembro de 2014?  

Pedro Côrtes — Um resultado positivo dessa crise foi o engajamento da população na economia. Hoje, na região metropolitana, as pessoas consomem 12% menos água do que no período pré-crise, em 2013. Às vezes, pode parecer que não é tão relevante assim [essa cifra de] 12%, mas é um volume significativo. Isso ajuda a dar certa folga ao sistema de abastecimento, que vem sendo constantemente pressionado, porque nem sempre se consegue o volume necessário ao longo do período de recarga dos reservatórios, que vai do fim de setembro até o término de março, especialmente concentrado em dezembro, janeiro e fevereiro. No fim do ano passado e no começo de 2023, tem sido excepcional, porque há uma quantidade de chuva que não verificávamos há vários anos, mas é muito importante que a população tenha a consciência de que aquela ideia de que a água está fartamente disponível não é verdade. Nós temos uma situação de escassez por conta das mudanças climáticas, da concentração populacional. Na região metropolitana de São Paulo, temos mais de 20 milhões de habitantes. O que equivale a duas vezes os habitantes de Portugal, metade da Argentina e metade da Espanha, ou seja, temos uma concentração que é equivalente à população ou parte da população de alguns países. 

BV — É preciso dar cada vez mais informações à população? 

Pedro Côrtes — Em relação ao consumo da água, é importante fornecer essas informações para a população, e elas estão facilmente disponíveis, e de maneira gratuita, pelo Instituto Nacional de Meteorologia, o Inmet, e por diversos institutos ligados a universidades públicas ou mesmo pelo Serviço Nacional de Meteorologia dos Estados Unidos [National Weather Service (NWS)]. O Cemaden, Centro Nacional de Monitoramento de Desastres Naturais, divulga também alertas que são muito importantes para que a gente saiba a quantidade de água disponível e a previsão de chuvas, para sabermos se a situação é mais confortável ou não... É semelhante a estar dirigindo numa estrada e olhar para o marcador de combustível e falar: “Eu estou aqui com 50% do tanque, qual é a distância que tenho de percorrer até o próximo posto? Então, tenho que andar um pouco mais devagar para poupar combustível ou posso ir com mais tranquilidade, porque sei que, em breve, eu vou encontrar um posto de gasolina”.  

BV — Considerando esse quadro de emergência climática que tem sido destacado pela ONU, quais são os riscos reais que enfrentamos?  

Pedro Côrtes — Não faz nem dois anos que nós tivemos uma estiagem intensa na Região Central do Brasil, com várias hidrelétricas ficando sem condições de gerar energia por falta de água, o nível estava extremamente baixo; e essa é uma situação que se reverteu rapidamente agora no final de 2022 e início de 2023. Antes de isso servir de alento, de um refresco, deve servir de alerta, porque esses extremos climáticos estão ocorrendo e já estavam previstos pelo Painel Intergovernamental de Mudança do Clima (IPCC), da ONU, que prevenia o Brasil e diversos locais no mundo sobre a ocorrência de eventos extremos. Pode ser uma estiagem muito severa em alguns locais com chuvas intensas em outros. O fato de estarmos hoje com uma situação mais tranquila em algumas regiões, ou não tão tranquila assim pelo excesso de chuvas, que tem causado uma série de transtornos em diversas cidades, não significa que a nossa questão de abastecimento, seja para consumo de água diretamente ou para geração de energia elétrica, tenha sido resolvida. Porque, assim como tivemos, há pouco mais de um ano e meio, uma situação oposta, a crise hídrica pode retornar. Infelizmente, as previsões do IPCC vêm se confirmando. No início, quando esses prognósticos saíam, os cientistas eram, muitas vezes, chamados de alarmistas; hoje, há quem diga que os pesquisadores foram conservadores. Os eventos estão ocorrendo em todo o mundo. Tivemos uma onda de calor no Canadá em 2021, no hemisfério norte, no verão deles, onde algumas áreas chegaram a 50°C. Recentemente, houve um frio intenso, com nevascas expressivas no Canadá e em parte dos Estados Unidos. A Europa vivenciou um verão muito forte também; Londres bateu recordes de temperatura, com um clima parecido com o do Rio de Janeiro. Só que eles não estão preparados para isso, não têm sistemas de refrigeração suficientes, a população não está acostumada. (...) O clima vem se comportando de uma maneira bem diversa daquela que costumava se apresentar, e isso causa bastante preocupação, porque nós estamos verificando que o excedente de gases de efeito estufa, em especial o CO2, o dióxido de carbono, não vem diminuindo... E mesmo que hoje parássemos de emitir gases de efeito estufa, o dióxido de carbono, o metano, esses gases demoram tempo para que o excedente seja eliminado pela atmosfera.  

BV — Há saídas para essa situação? 

Pedro Côrtes — Uma das formas que acho mais fácil e benéfica é a reconstituição de florestas degradadas, pois, ao serem recompostas, na sua fase de crescimento, pela fotossíntese, absorvem CO2, ficam com o carbono, que é utilizado na construção do tecido celular das plantas, para o seu crescimento, e liberam oxigênio de volta à atmosfera. Então, quando temos a recomposição das matas, como a Floresta Amazônica, o Cerrado, a Mata Atlântica, temos essa captura de carbono da atmosfera, e isso, além de reduzir a quantidade de gases de efeito estufa, tem também um benefício ambiental grande, porque estaremos recompondo os ambientes naturais, o que acaba repercutindo bastante na disponibilidade de água. A partir do momento em que vamos recompondo nascentes, mais água estará disponível, assim como, ao recompor o entorno de rios, lagos, represas, mais saudável esses corpos d’água serão, e, consequentemente, isso faz com que um rio que tenha as suas margens restauradas seja ambientalmente bem mais saudável e resistente às condições climáticas extremas.  

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Uma família atravessa uma área inundada após fortes chuvas de monção no distrito de Charsadda, em Khyber Pakhtunkhwa, em 29 de agosto de 2022.

BV — Além do que já foi colocado, o que faz com que as chuvas se transformem tão facilmente em enchentes, alagamentos, desastres naturais em grandes centros urbanos? 

Pedro Côrtes — Em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e outras capitais do país, onde o crescimento urbano não foi planejado, não se levou em conta uma das funções principais de um rio, que é drenar as águas das chuvas. Eles foram tomados como um obstáculo ao desenvolvimento urbano; optou-se por sua canalização, ratificação, ou seja, um rio que apresentava curvas foi transformado em um canal, e, depois, eles foram recobertos, isolados do restante do ambiente. E o que acontece? Ele continua buscando cumprir sua função natural. Então, quando há uma chuva intensa, acaba ocupando as suas margens, tentando drenar essa água, só que nas margens temos avenidas, edifícios, casas... E toda essa infraestrutura será afetada com enchentes. Outro problema é a impermeabilização do solo. As cidades vão sendo asfaltadas, a água da chuva não penetra mais no subsolo. [Se não bastasse isso,] as galerias de água pluvial foram construídas a partir de modelos norte-americanos, europeus, locais onde não temos chuvas tropicais tão intensas, de clima mais temperado. (...) É necessário repensar a nossa infraestrutura de drenagem urbana em função das situações extremas impostas pelas mudanças climáticas. (...) As cidades litorâneas, como é o caso do Rio de Janeiro, têm a questão da elevação do nível do mar; mesmo que ela não seja tão perceptível para as pessoas, que ocorra alguns centímetros, isso já é suficiente para causar o afogamento dos rios. Eles passam a ter uma maior dificuldade de escoamento, exatamente porque o nível do mar subiu, isso faz com que o escoamento seja mais lento. Vamos imaginar algo oposto: no caso do Rio de Janeiro, se ele tivesse recuado cerca de 100, 200 metros, vocês imaginam a velocidade com a qual esses rios chegariam ao mar. Se não há o oceano ali pela frente, facilmente essa água vai escoar. O oposto é o que está ocorrendo, ele subindo, mesmo que seja um pouco, já começa a servir de bloqueio para o escoamento das águas. 

BV — Apesar de o Brasil ter grandes reservas de água potável, há um nível de complexidade para fazer a transposição desse líquido, por exemplo, da Amazônia para os grandes centros do Sudeste, da Região Central do país. Quais os desafios para garantir esse recurso natural para todos? 

Pedro Côrtes — Na pergunta, há a citação da possibilidade, teórica, de uma transposição da água do Norte para o Sudeste, mas isso já ocorre. Ela se dá naturalmente por meio dos chamados rios voadores. Nós temos na região equatorial do Oceano Atlântico uma evaporação grande de água, e esse vapor é transportado pelos ventos equatoriais, ventos alísios, porque eles sempre sopram de leste para oeste, empurrando essa umidade para o interior da Amazônia, onde é precipitada sob forma de chuva, irrigando o subsolo, e aí as grandes árvores, que possuem raízes profundas, conseguem drenar essa água do subsolo e repõem essa umidade na atmosfera, por meio do fenômeno evapotranspiração (transpiração das plantas). Esses ventos continuam soprando até encontrar a [cadeia de montanhas dos] Andes, uma parte consegue passar por cima dos Andes, mas outra faz uma curva e leva essa umidade para as Regiões Centro-Oeste e Sul, passando pelo Paraguai, Uruguai e norte da Argentina, onde provocam chuvas. O desmatamento reduz essa reposição de água na atmosfera, os ventos continuam soprando, só que não conseguem fazer com que ocorra o mesmo volume de chuva, por exemplo, na Região Central que acontecia antes. Mesmo na Região Sul há uma redução do volume de chuvas, o Rio Grande do Sul tem passado por períodos mais intensos de estiagem exatamente pelo fato de essa água que vem da Amazônia ter sido reduzida em função do desmatamento.  

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BV — A preservação das nossas florestas e rios é uma questão multifatorial que impacta no custo de vida da sociedade como um todo... 

Pedro Côrtes — Às vezes, as pessoas falam assim: por que vou me preocupar com o desmatamento da Floresta Amazônica? Eu respondo: é ele que provoca a tendência de redução do volume das hidrelétricas, de modo que elas percam a capacidade de geração de energia elétrica, por sinal a mais barata que temos. Foi o desmatamento que intensificou o uso das termelétricas, que são o oposto, pois representam a energia mais cara. Por isso, a nossa conta de energia subiu. O desmatamento da Amazônia já está precificado na nossa conta de energia, que poderia ser mais baixa. A disponibilidade de água influencia também no abastecimento da região metropolitana de São Paulo, porque o Sistema Cantareira, que é o principal sistema produtor, e o Sistema Alto Tietê, o segundo maior, vêm com uma tendência ao longo dos últimos 10, 11 anos, de chuvas bem abaixo da média, ou seja, está chovendo menos do que o esperado, e isso compromete a nossa segurança hídrica. No caso do Cantareira, quase toda a precipitação vem da Amazônia, e a do Alto Tietê, cerca de 60% a 70% vêm de lá também. Veja, o desmatamento cobra o seu preço nas contas que temos para pagar, não é simplesmente uma situação teórica, é prática mesmo, que já vem afetando as nossas finanças.