Mundo tem se voltado, cada vez mais, para a preservação da Floresta Amazônica

Carlos Nobre defende o patrimônio amazônico e diz que a região pode ser um centro de produção de Ciência de ponta com o conhecimento dos povos originários

Leila Marco e Alan Lincoln

10/02/2023 às 08h20 - sexta-feira | Atualizado em 14/02/2023 às 10h15

No século 21, nenhum tema será mais relevante aos habitantes da Terra do que a crise climática e a perda de biodiversidade que ameaça diferentes formas de vida. É o que têm afirmado as maiores cabeças pensantes do mundo. Uma delas está aqui em nosso país, trata-se do professor Carlos Nobre, cientista ambiental há mais de 40 anos, pesquisador do Instituto dos Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP) e copresidente do Painel Científico para a Amazônia.

Carlos Nobre

Durante entrevista exclusiva à revista BOA VONTADE, apesar dos duros alertas que faz quanto ao grave perigo que paira sobre o nosso maior patrimônio natural, a Floresta Amazônica e outros biomas, como o Cerrado, o Pantanal, a Caatinga, a Mata Atlântica e os Pampas, um brilho especial surge nos olhos desse valente defensor quando fala do projeto que lidera, o qual unirá os países amazônicos no desenvolvimento de centros de pesquisa de ensino da nova bioeconomia: o Instituto de Tecnologia da Amazônia (AmIT), nome escolhido em referência ao Massachussets Institute of Technology (MIT).

Segundo Nobre, essa bioeconomia já tem apresentado soluções para o desenvolvimento sustentável na Amazônia, bioma*¹ do qual o Brasil detém 61% (outros 8 países são detentores de trechos menores). O estudioso destaca que, sem esse ecossistema, será impossível impedir que a temperatura média do planeta ultrapasse 1,5oC, tido como limite aceitável pelo Acordo de Paris (2015). Em situação mais extrema, com desmatamento e degradação constantes, pode-se chegar a um ponto de não retorno na Amazônia, o que jogaria no ar “mais de 250 bilhões de toneladas de carbono”, um desastre sem precedentes para a humanidade.

Sem falar no que representa a floresta em pé, um milagre que, todos os dias, no transpirar de seus milhões de árvores, vaporiza na atmosfera quantidade de água igual a todo o Rio Amazonas, que segue como rio voador a diversas cidades do país e cai como chuva abençoada a contribuir para a existência das populações.

BOA VONTADE — Por que o mundo tem se voltado, cada vez mais, para a preservação da Floresta Amazônica?

Carlos Nobre — Por várias razões, mas, no sentido mais direto de emergência climática, é para atingirmos as metas do Acordo de Paris, assinado em 2015 e que foi reforçado depois na COP26, na Convenção [Quadro das Nações Unidas sobre] Mudança do Clima, em Glasgow, Escócia, em 2021, dizendo que não podemos deixar a temperatura do planeta passar de 1,5oC, aliás já chegamos a 1,15oC, estamos à beira de um precipício, por isso o termo emergência climática. Temos de reduzir as emissões dos gases do efeito estufa em 50%, em menos de 8 anos, ou seja, até 2030, e zerar as emissões antes de 2050. Veja que as florestas do planeta guardam grande quantidade de carbono, a Floresta Amazônica armazena mais de 150 bilhões de toneladas de carbono abaixo do solo e acima dele na vegetação. Então, a preocupação é grande, em primeiro lugar, pelo desmatamento e pela degradação [florestal]*², e tudo aquilo vira gás carbônico, que segue para a atmosfera, é gás do efeito estufa. No Brasil, quase 50% de emissões de gases do efeito estufa nesses últimos anos é de desmatamento, principalmente da Amazônia (80%), mas também do Cerrado e de outros biomas. Em primeiro lugar, é essencial zerar o desmatamento, a degradação para diminuir e zerar as emissões. (...) O nosso país pode liderar um grande projeto de restauração florestal, inclusive lançamos essas ideias na COP27. A Ciência tem mostrado que o sul da Amazônia se encontra próximo do chamado ponto de não retorno, o clima já mudou nessa região, a estação seca está cinco semanas mais longa e a mortalidade das aves aumentou muito. No sul do Pará e no norte do Mato Grosso, a floresta virou fonte de carbono, ela emite mais do que retira carbono, uma estação seca longa, com 2 a 3 graus, 20 e 30% com grau maior de seca, então, a floresta está ali na véspera do ponto de não retorno, se passar desse limite, no mínimo, 50% da Floresta Amazônica decompõe num ecossistema degradado, com poucas árvores, gramíneas... O fogo será um fenômeno normal, a exemplo do que ocorre no Cerrado, só que o Cerrado evoluiu em 50 milhões de anos com o fogo; a floresta, não. Se passar desse ponto, entre 30 e 50 anos, jogaremos na atmosfera uns 250 bilhões de toneladas de gás carbônico, e, para atingir o Acordo de Paris, o máximo que se pode emitir é 400 bilhões de toneladas em todo o mundo. Para salvar o planeta da emergência climática, temos de recuperar a Amazônia.

BV — Que risco as queimadas representam para o futuro da Amazônia?

Carlos Nobre — Elas têm aumentado demais. Estudo recente publicado pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostrou que, entre agosto e setembro do ano passado, tivemos altíssimo número de queimadas, o maior desde a megasseca de 2010; quando há uma estiagem dessas, o número de queimadas e a temperatura aumentam muito, mas, em 2022, não houve seca, foi um ano normal, porém, mesmo assim, quase o número de queimadas, de agosto e setembro, foi igual ao do nível de 2010. Os estudos mostram que 95% dos incêndios são humanos e a maioria é proposital, criminosa, usando o fogo para destruir e degradar a floresta. Outra parte dos incêndios se dá em razão de o pecuarista brasileiro, tradicionalmente na Amazônia, usar a queima para renovar a pastagem, e, com isso, faíscas pulam para a floresta, correndo o chão, matando grande quantidade de árvores, os raios de sol passam a secar mais o solo, e toda aquela região fica mais vulnerável ao fogo. A Floresta Amazônica, que evoluiu em dezenas de milhões de anos, é bastante resiliente ao fogo, porque é tão densa que só, no máximo, 4% da energia solar chega ao solo, então, não há energia para secá-lo, ele é sempre bastante úmido, e a vegetação, os troncos, os galhos, as folhas, as raízes, quando há descarga elétrica de raio, ela começa o fogo onde caiu, porque é uma enorme energia, mas se propaga por poucos metros. Hoje a gente está vendo esses incêndios se estenderem por centenas e centenas de metros, aumentando demais a mortalidade. Temos de combater o crime desse incêndio proposital e mudar a cultura do pecuarista brasileiro para não usar mais o fogo na pecuária.

BV — O Brasil pode ser um ator relevante no cenário internacional de preservação do meio ambiente?

Carlos Nobre — Sem dúvida, é um ator superimportante, porque o Brasil, nos últimos anos, tem sido o 5o país que mais emite gás do efeito estufa, 80% de nossas emissões são de desmatamentos da Mata Atlântica, do Cerrado, da Amazônia, da Caatinga, dos Pampas e da agricultura, apenas 16% é da queima de combustíveis fósseis. O nosso país possui enorme responsabilidade, porque a maior parte da Floresta Amazônica está em território nacional: 61% dela. Temos também uma comunidade científica bastante preocupada, e precisamos liderar esse esforço e trazer as outras nações amazônicas, em grande iniciativa que chamamos de bioeconomia de floresta em pé, que valoriza produtos dos ecossistemas terrestres e aquáticos. A maior biodiversidade do planeta está na Amazônia, que trará grande benefício econômico para todas as populações, tanto rurais como urbanas, uma nova indústria [que se apropria das soluções desenvolvidas pela Natureza], agregando valor a essa imensidão de produtos. Em todas as pesquisas de opinião, cerca de 95% da população brasileira quer conservar a Amazônia. Estamos entre os três países do mundo em que o povo está preocupado com as mudanças climáticas, então, temos realmente de buscar essas trajetórias de sustentabilidade, reduzindo drasticamente nossas emissões. O nosso país é o 4o maior produtor e o 2o exportador de alimentos do planeta e temos [apenas] 6% da área agrícola praticando a agricultura regenerativa, ou seja, 2,8 milhões de quilômetros quadrados. Então, há enorme potencial a expandir na agricultura e na pecuária regenerativa. Esse sistema que tem sido desenvolvido pela Embrapa*³, bem como a integração lavoura-pecuária-floresta [ILPF], que utiliza desses diferentes sistemas [dentro de uma mesma área], o que leva a [“sequestrar” até 40% a mais de carbono do que em uma pastagem convencional], e nós temos 1,6 milhões de quilômetros quadrados de pastagem. É necessário combater as mudanças climáticas e tornar a agricultura e a pecuária mais resilientes aos extremos climáticos, que estão explodindo no orbe todo; são secas, ondas de calor, chuvas intensas... Esses extremos do clima estão causando enormes prejuízos, a quebra de safras. A agricultura regenerativa diminui muito esses riscos, porque, quando você tem esses sistemas integrados, recupera parte do bioma, seja floresta, Cerrado, Pantanal, aquilo protege sua cultura agrícola, sua pastagem, e diminui a temperatura, os extremos climáticos, a erosão do solo e mantém os polinizadores. A agricultura regenerativa não é só mais lucrativa como também produz mais.

BV — Essa mudança de postura necessária passa pelo respeito aos povos originários e por um processo educacional que privilegie a emergência climática...

Carlos Nobre — É importante reconhecer e valorizar a cultura dos povos originários, principalmente os indígenas. O homo sapiens chegou à Amazônia há 12 mil anos, onde se desenvolveram inúmeras etnias, línguas, culturas... Quando os europeus colonizadores chegaram aqui, há mais de 500 anos, existiam de 8 a 10 milhões de indígenas habitando a região amazônica, com mais de mil diferentes línguas, etnias, e todos eles compartilhavam da mesma visão: a floresta em pé, e continuam até hoje com ela. Os europeus vieram, principalmente, da Península Ibérica, que é semiárida, e de países que, naquela época, período do Renascimento, eram muito desmatados, como França, Reino Unido, então, eles trouxeram aquela cultura. Se observarmos todas as américas em que os europeus chegaram, eles eliminaram os ecossistemas naturais e, especialmente, as florestas tropicais. Precisamos voltar no tempo e entender a cultura dos povos originários e a qualidade de vida muito melhor que eles tinham com a floresta. Quando Pero Vaz de Caminha escreveu aquela carta ao rei de Portugal [que relata o que havia nas novas terras “descobertas”], no sul da Bahia, em 1500, ele afirmou, “em se plantando, tudo dá”, porque ficou bastante admirado com a belíssima Mata Atlântica, no sul baiano com o norte do Espírito Santo, que tem a maior biodiversidade de árvores do mundo: 450 diferentes espécies por hectare, até mais do que encontramos na Amazônia, que, apesar disso, tem quantidade bem superior de espécies de plantas e animais. Portanto, é hora de mudarmos e valorizarmos os conhecimentos dos povos originários e percebermos que o potencial econômico do país com maior biodiversidade do planeta é gigantesco. Basta ver as comunidades que praticam sistemas agroflorestais, capazes de gerar tantos artigos: açaí, castanha, buriti, cacau, cupuaçu; eu podia ficar uma hora falando sobre eles, são mais de 500 produtos que a Ciência já mapeou. Há enorme potencial biológico, econômico e de grande importância no sentido da biodiversidade. (...) Os biomas do Brasil têm 16 mil espécies de árvores, só para mostrar em números essa grande capacidade que temos para desenvolver, agora, lógico, combinando, herdando essa cultura dos povos originários de manter os biomas não perturbados, com base na Ciência, levando a bioeconomia de floresta em pé e rios fluindo, que nós chamamos de Projeto Amazônia 4.0, uma economia para gerar biofábricas, bioindústrias, para agregar valor e gerar também bons empregos, algo vital, que melhorará a vida das populações da região e a economia de todos os países amazônicos. Estamos ainda desenvolvendo um estudo para criar o Instituto de Tecnologia da Amazônia [em inglês, Amazon Institute of Technolgy] (AmIT) para viabilizar as ferramentas e a capacitação de estudantes de graduação e pós-graduação para alimentar esse pilar da nova bioeconomia. Eu acredito que o Brasil tenha todas as condições de liderar e articular com os países amazônicos a criação do AmIT, que é essencial para essa economia.

BV — Quando se fala do potencial das energias renováveis no Brasil, vem a questão do que falta ainda para o nosso país concretizar a viabilidade dessas fontes?

Carlos Nobre — Nós temos gigantesco potencial da energia solar e energia eólica, já são economicamente viáveis, existem sistemas financeiros no país, bancos que financiam empréstimos e que você paga tudo em 5 a 6 anos, e o painel solar dura de 20 a 25 anos. Então, economicamente, é totalmente viável, mas precisamos da escala, que pode ser muito acelerada. A energia eólica no Brasil é a mais barata no mundo, a energia solar e a eólica são um terço mais baratas que a termelétrica. Sem falar que a energia renovável gera uma quantidade bem maior de empregos do que a termelétrica.

BV — Gostaríamos de agradecer sua participação e deixar o nosso espaço aberto para que continue compartilhando seus conhecimentos em outras oportunidades.

Carlos Nobre — Será uma grande satisfação, vamos trabalhar para que o Brasil seja o primeiro país a atingir as metas do Acordo de Paris, uma iniciativa que todos nós, brasileiros, temos a responsabilidade, e seremos, sim, estou muito otimista que vamos atingir esses objetivos. Fato essencial para combater a enorme emergência climática, o maior desafio que a comunidade mundial já enfrentou, e nós, brasileiros, vamos salvar a Amazônia!                                                      

 

 

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*1 A Amazônia é formada por um conjunto de ecossistemas que envolve a bacia hidrográfica do Rio Amazonas e a Floresta Amazônica, sendo encontrada em outros países (Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela). É detentora da maior biodiversidade do planeta.

*2 Degradação florestal é o resultado de um conjunto de perturbações que ocorrem por influência humana, mesmo que a floresta esteja de pé, sendo um fenômeno mais difícil de ser percebido.

*3 Embrapa — Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária.