Cientista ambiental Carlos Nobre alerta sobre os nocivos efeitos das mudanças do clima

À revista BOA VONTADE, o especialista enfatizou que é necessário agir imediatamente, implementando severas medidas que reduzam as emissões de gases de efeito estufa e protejam os ecossistemas naturais.

Karine Salles e Alan Lincoln

01/08/2023 às 12h33 - terça-feira | Atualizado em 01/08/2023 às 17h17

Essa matéria foi publicada, originalmente, na revista BOA VONTADE nº 286, de agosto de 2023. Para ler outros conteúdos publicados desta edição, clique aqui.

A humanidade deve enfrentar tempos difíceis. Pelo menos é o que os termômetros indicam. O dia 6 de julho de 2023 foi o mais quente já registrado, de acordo com o comunicado da Organização Meteorológica Mundial (OMM) e pelos dados fornecidos pelo Serviço de Mudanças Climáticas Copernicus (C3S), financiado pela União Europeia. A temperatura média global atingiu 17,08°C, maior que o recorde anterior de 16,8°C em agosto de 2016.

Os números ainda apontam que o atual mês de julho reúne 21 dos 30 dias com a maior média global de temperatura do ar. As extensas e intensas ondas de calor são alarmantes, mas não surpreendentes, pois, infelizmente, as condições observadas estão de acordo com as projeções do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado em março deste ano.

O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, advertiu recentemente que as alterações climáticas estão fora de controle. “Se persistirmos em adiar medidas fundamentais, penso que estamos caminhando para uma situação catastrófica, como demonstram os últimos recordes de temperatura”, declarou. 

Desde abril, os países asiáticos têm sido atingidos por vários recordes de calor, causando preocupações quanto à sua capacidade de adaptação a um clima em rápida mudança. Em meados do mês passado, Sanbao, cidade que fica na região de Xinjiang, no oeste da China, alcançou 52,2°C

A OMM está intensificando os esforços para fortalecer os alertas precoces das altas temperaturas e os planos de ação integrados para as ondas de calor, que estão entre os perigos naturais e mortais. É importante ressaltar que essas condições climáticas extremas não afetam apenas o meio ambiente, visto que representam sérios riscos à saúde humana. No verão de 2022, mais de 61 mil pessoas morreram em decorrência do calor na Europa, conforme revelou estudo publicado pela revista científica Nature Medicine, o artigo “Heat-related mortality in Europe during the summer of 2022” (“Mortalidade relacionada ao calor na Europa durante o verão de 2022”, em tradução livre).

Divulgação

Carlos Nobre 

E esse cenário se deve em grande parte às temperaturas muito altas da superfície dos oceanos, não só por causa das alterações climáticas, mas também pelo fenômeno El Niño, que modifica as condições meteorológicas em escala regional e global. Durante entrevista à revista BOA VONTADE, o professor Carlos Nobre, cientista ambiental há mais de 40 anos, pesquisador do Instituto dos Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP) e copresidente do Painel Científico para a Amazônia, enfatizou que é necessário agir imediatamente, implementando severas medidas que reduzam as emissões de gases de efeito estufa e protejam os ecossistemas naturais. Ainda segundo ele, somente por meio de ações humanas conscientes poderemos preservar o planeta para as gerações futuras.

BOA VONTADE – Pode detalhar a razão das recentes ondas de calor?

Carlos Nobre – Elas sempre existiram, na variabilidade natural do sistema climático da meteorologia. O que ocorre é que, às vezes, há um sistema de alta pressão que fica bloqueado numa região: ele não deixa as frentes frias chegarem àquela área. O ar fica muito quente, por conta do Sol e da falta de 

chuvas. Porém, o que está acontecendo, agora, decorre do aquecimento global. Ou seja, esses eventos estão ficando mais frequentes e intensos. (...) A temperatura média global chegou a aumentar 1,26°C em 2016, exatamente por causa do El Niño. Agora, em 2022, ela estava 1,15°C mais quente. Então, há a previsão de que nesse fim de ano e em 2024 o El Niño faça essa marca ser ultrapassada. (...) A maior preocupação é que, com a continuidade da emissão dos gases de efeito estufa, esse limite estabelecido pelo Acordo de Paris, que é 1,5°C, poderá ser ultrapassado em menos de 10 anos, como a temperatura média do risco global, o que é muito grave. Nós teríamos que reduzir muito as emissões [de gases de efeito estufa] para evitar que 1,5°C já fosse atingido na próxima década.

BV – De modo geral, um evento que ocorra numa área do planeta pode impactar outra região do globo?

Carlos Nobre – Sem dúvida! Os eventos extremos estão acontecendo em todo o planeta. Nessas latitudes médias e altas, é muito mais comum ondas de calor e secas. Os incêndios florestais vêm acontecendo em inúmeras regiões. No verão de 2019-2020, a Austrália experimentou a maior seca do seu registro histórico e o maior incêndio de vegetação, o que trouxe imensa poluição e matou centenas de milhões de animais. A Califórnia teve, em 2020-2021, um dos maiores incêndios do registro histórico na costa oeste do Canadá. Ocorrem em todo o planeta. (...) 
Só vamos ter sucesso no Acordo de Paris se superarmos esse enorme desafio, que é não deixar a temperatura passar de 1,5°C. [Do contrário], esses fenômenos ocorrerão mais frequentemente. Nós estamos com 1,15°C chegando a 1,2°C. Precisamos, portanto, buscar medidas para aumentar a resiliência, a adaptação, a proteção da saúde, porque não tem jeito de impedir esses fenômenos, pois a vegetação está muito seca, vem uma onda de calor, a falta de chuva, cai uma descarga elétrica e pronto, já tem fogo. (...) Deve-se educar a população, por exemplo, a não usar o fogo [incorretamente]. Alguns dos incêndios na Austrália, cerca de 20-25% deles, foram causados por ações humanas, um churrasco talvez. Agora, 80% são de fenômenos naturais. Na Califórnia, no Canadá, são todos não provocados. Por outro lado, aqui no nosso país, na Amazônia, no Cerrado, 95% dos incêndios são causados por pessoas botando fogo, seja para a agricultura ou para a pecuária. Se não causássemos esses incêndios, talvez teríamos um número muito menor. 

(...) De 2010 a 2019, tivemos em todos os municípios da Amazônia 1,5 milhão de internações em hospitais e postos de saúde de pessoas afetadas pela poluição das queimadas. Isso ocorre muito frequentemente no fim da estação seca. A imprensa mundial deu destaque para Nova York, [quando a cidade foi invadida por densa fumaça originada de focos de incêndios florestais no Canadá], mas [as queimadas] acontecem todos os anos aqui. A diferença é que lá foram causadas por descargas elétricas, enquanto que aqui foram geradas por nós mesmos.

BV – Em 2022, mais de 61 mil mortes ocorreram na Europa em razão das altas temperaturas. Esse número pode aumentar este ano?
Carlos Nobre –
Esse artigo da Nature Medicine foi destaque mundial. Às vezes, nos concentramos nos índices de mortes causadas por inundações, deslizamentos, e, de repente, esse estudo traz um número gigantesco de óbitos em consequência das ondas de calor. E detalhe: esse dado é muito parecido com o de mortos nos terremotos da Turquia e da Síria [ocorridos em fevereiro deste ano]. Só que, diferentemente do abalo sísmico em que as pessoas morrem porque as habitações são destruídas, as mortes causadas pelas ondas de calor são nos hospitais. Isso porque quando temos uma forte onda de calor, com clima muito seco, nosso corpo perde muita água, transpira demais. E há pessoas idosas que perdem a noção do quão importante é se hidratar. Devemos beber litros de água por dia, porque a falta dela leva à morte. E esse estudo mostra o risco que as mudanças climáticas trazem. Portanto, precisamos de um mecanismo educacional muito grande, reforçando que essas ondas de calor não param mais de acontecer. Elas vão, inclusive, aumentar, mesmo com o sucesso do Acordo de Paris. Temos que fazer as populações — principalmente dos países menos acostumados com ondas de calor e com as temperaturas altas — manterem o comportamento de redução dos riscos, a exemplo de beber muita água e não se expor ao calor muito intenso.

BV – O Acordo de Paris representa um marco na história das negociações climáticas internacionais. O senhor acredita que atingiremos as metas propostas? 
Carlos Nobre – Estamos numa velocidade [de ação] em que se torna muito difícil atingir os objetivos do Acordo de Paris, colocando o planeta num enorme risco. Já há soluções tecnológicas e econômicas, como as energias renováveis. Hoje, elas já são disseminadas globalmente; economicamente, são mais baratas do que as fontes de energia fóssil. Temos a eletrificação de veículos, a geração de energia elétrica com os painéis solares e energia eólica, os biocombustíveis para aviação... Tudo isso está se tornando totalmente factível, do ponto de vista tecnológico e econômico.  

No entanto, a velocidade dessa transição está sendo muito lenta. Por isso que considero esse o maior desafio que a humanidade já enfrentou. É possível enfrentar? Reduzir as emissões? É possível! Mas nós estamos indo nessa direção? Infelizmente, não. As emissões continuam altas. Talvez, atinjam o pico em 2025. O IPCC fez essa recomendação no seu último relatório. Mas e aí? Nós vamos conseguir em cinco anos reduzir em 50% as emissões? Vamos zerar as emissões até 2050? Esse é o maior desafio da humanidade.   

BV – A grave situação atual pode forçar-nos a acelerar esse processo que, como o senhor afirma, ainda está muito moroso?  
Carlos Nobre – Em princípio, já devíamos estar respondendo a isso. As pessoas não têm a percepção do risco em que estão colocando o planeta. Com essas 61 mil mortes causadas pela onda de calor na Europa, devemos começar a enxergar que esse risco é muito parecido, por exemplo, com a pandemia da Covid-19. Quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) a declarou em março de 2020, imediatamente, praticamente todos os países do mundo declararam o lockdown e exigiram o uso de máscara e outras medidas de higiene para não se transmitir o vírus. [A crise sanitária] prejudicou a economia do mundo, mas toda a população mundial aceitou [essa contrapartida]. Tivemos um número não pequeno de óbitos. Mas, se ela não aceitasse [as medidas de isolamento social], teríamos até 200 milhões de mortes.  

É importante perceber que a mudança climática traz riscos enormes, similares aos da pandemia. Temos de caminhar muito mais rápido para a redução de emissões e para a busca de mecanismos de adaptação [ao cenário atual]. Os sistemas educacionais e de saúde precisam educar os idosos, por exemplo, sobre a ingestão de água durante os dias quentes e secos, o que reduziria muito o número de mortes. [Também é necessário] levar as pessoas a entenderem sobre [a necessidade do] consumo responsável. 

Unsplash/John Towner

2020 foi a década mais quente já registrada, de acordo com a Organização Meteorológica Mundial

BV – Qual o contexto do nosso país no cenário atual das altas temperaturas? 
Carlos Nobre – O Brasil está muito próximo de um oceano tropical e tem ocorrido secas. (...) Mas o que ocorre muito em nossa nação são as tempestades. Tivemos em dezembro de 2021, e até recentemente, o maior número de eventos extremos de chuva, que causaram mais de 500 mortes em Petrópolis/RJ, na Grande Recife/PE, em São Sebastião/SP. Somos também muito afetados por chuvas extremas, provocadas quando há muita evaporação da água dos oceanos. Condensada, ela é transportada para dentro do continente e gera chuvas muito intensas, que causam inundações, deslizamentos e muitas mortes também. Então, são todos esses fenômenos que ocorrem no Brasil quando há ondas de seca, muito associadas a ondas de calor também. Essas condições não estão distantes dos outros países. 

BV – Podemos relacionar os recentes ciclones na costa brasileira a esses fenômenos globais de mudança climática? 

Carlos Nobre – Sem dúvida! Muitos deles são associados com o Oceano Atlântico subtropical ali à costa da Argentina, do Uruguai, do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina, onde há águas mais quentes, responsáveis por uma evaporação grande. E esse vapor da água condensa em nuvens nos anticiclones tropicais, fazendo o ar girar com maior velocidade. Esses fenômenos extremos sempre ocorreram, mas agora se dão com intensidade muito mais elevada.  

BV – Quais são os possíveis caminhos que a humanidade tem para mudar esse cenário?  
Carlos Nobre – Infelizmente, há várias áreas do planeta sem condição de adaptação. Se o nível do mar continuar subindo muito, mais de 500 milhões de pessoas não conseguirão viver onde estão.  Portanto, não existe possibilidade de só buscar adaptação. (...) A única saída é reduzir as emissões [de gases poluentes]. Esse é o maior desafio da humanidade. Eu reitero: todos têm que fazer isso. Não é uma pessoa. Um país ou outro, é toda a humanidade, e o mais rápido possível. O cumprimento das metas do Acordo de Paris parece muito difícil, mas nós não podemos desistir.