Ameaça que vem do ártico

Pesquisadora russa adverte que emissões de metano podem acelerar, de forma dramática, o aquecimento global.

10/11/2015 às 17h43 - terça-feira | Atualizado em 24/11/2015 às 10h15

Arquivo Pessoal

Natalia Shakhova é professora pesquisadora da Universidade Politécnica de Tomsk, na Sibéria, Rússia, e da Universidade do Alasca Fairbanks, no Alasca, Estados Unidos, além de membro da Academia Russa de Ciências.

Questões muito sérias têm sido levantadas pela cientista russa Natalia Shakhova, que, ao lado do compatriota Igor Semiletov, lidera um grupo de pesquisadores internacionais preocupados com a crescente liberação de metano (CH4) no solo oceânico da Plataforma Ártica Leste-Siberiana (East Siberian Arctic Shelf — Esas), situada na costa norte do leste da Rússia. As observações deles mostram que, em alguns pontos, a concentração do gás é até milhares de vezes maior do que a esperada. Segundo os estudiosos, no verão, quando o mar descongela, o CH4 pode ser visto borbulhando na superfície das águas em estruturas de escoamento contínuas, impressionantes e poderosas, de mais de mil metros de diâmetro.

Em agosto, Shakhova, que é professora pesquisadora da Universidade Politécnica de Tomsk, na Sibéria, Rússia, e da Universidade do Alasca Fairbanks, no Alasca, Estados Unidos, além de membro da Academia Russa de Ciências, abriu espaço em sua apertada agenda para falar sobre o tema em entrevista exclusiva à BOA VONTADE. Na ocasião, a doutora em Ciências em Geologia Marinha e Ph.D. em Geografia Médica explicou que o fenômeno acima referido, mapeado por ela e seus colegas desde 2003 em uma das mais remotas e isoladas áreas do mundo, é resultado do progressivo degelo do permafrost (solo encontrado na região do Ártico, constituído por terra, gelo e rochas,  permanentemente congelado), debaixo do qual os pesquisadores estimam poder existir de milhões a bilhões de toneladas de metano, um dos gases de efeito estufa cuja capacidade de reter calor é vinte vezes maior que a do dióxido de carbono (CO2), também conhecido como gás carbônico.

Ao comentar os impactos da descoberta de seu grupo, Shakhova aproveitou a oportunidade para expor um fato extremamente preocupante: “(...) as fontes de metano no Ártico nunca foram incluídas no orçamento global de metano, tampouco foram consideradas nos modelos climáticos globais, que visam prever os cenários climáticos futuros para o planeta”. Em outras palavras, a liberação do CH4 que há naquela vasta região pode fazer com que o aquecimento global se agrave cada vez mais e de maneira rápida.
 

Divulgação

Apreensiva pela possibilidade de concretização desse quadro sombrio, a pesquisadora ainda destacou: “Nem eu nem ninguém de nossa equipe científica já esteve no Brasil, mas sabemos que o povo brasileiro estima os valores familiares. Esperamos que essa qualidade se espalhe pelo mundo para que todas as pessoas que vivem no planeta comecem a cuidar umas das outras e da Mãe Natureza da mesma forma que se preocupariam com os próprios familiares. Isso tornaria nosso orbe um lugar muito mais seguro e feliz para viver”.

BOA VONTADE — Sua equipe trouxe significativos alertas à comunidade científica mundial sobre os perigos da iminente desestabilização do permafrost ártico. Como tem sido a rotina de pesquisa de vocês nesse local?

Shakhova — A Plataforma Ártica Leste-Siberiana, onde trabalhamos, é a maior plataforma continental do mundo (com 2 milhões de quilômetros quadrados), sendo uma vasta área de pesquisas. Quando começamos os estudos, nada se sabia sobre as emissões de metano. (...) Era como procurar uma agulha num palheiro. Tivemos a sorte de encontrar algumas zonas ativas em 2003 e acreditamos que devia haver outras mais. Desde então, realizamos expedições marítimas todos os anos. Em 2011, começamos a perfurar o permafrost, que existe abaixo do leito marinho. Instalamos nossa sonda de perfuração no gelo fixo, extraímos núcleos de sedimentos e pesquisamos o estado atual do permafrost submarino, importante fator de controle das emissões de metano na Esas. (...) Nosso trabalho científico no mar inclui testes e pesquisas 24 horas por dia. Não dormimos muito durante as expedições.

“A intensa liberação de gás metano proveniente de depósitos desestabilizados no leito marinho teria consequências imprevisíveis em nosso sistema climático.”

BV — Quais são os principais desafios encontrados quando estão em campo?

Shakhova — Além das dificuldades logísticas, o Ártico é um ambiente inóspito, e trabalhar nele é sempre um desafio, especialmente nos dias atuais, porque a região se está aquecendo a um ritmo duas vezes mais rápido do que o restante do mundo. Toda a criosfera está afetada: o gelo marinho, as geleiras e o permafrost. Tempestades acontecem com maior frequência do que antes, as ondas são mais altas, e existe a possibilidade de encontrar as chamadas ondas assassinas ou gigantes, de até 100 pés de altura [aproximadamente 30 metros]. Uma onda desse tipo poderia afundar nossa embarcação em questão de minutos ou até menos. (...) A realização de expedições no inverno está se tornando ainda mais difícil, porque o gelo marinho está diminuindo de espessura, as áreas de águas abertas no meio do gelo (as chamadas polínias) estão aumentando, e o período de rachadura do gelo está começando mais cedo. Houve um ano no qual nossa expedição foi quase arrastada por um fluxo de água formado pelo gelo derretido — bem antes do que o previsto —, oriundo do rio Lena.

BV — O que pode representar o degelo do permafrost ártico?

Shakhova — Ele é feito de solo congelado em áreas terrestres e de sedimentos congelados abaixo do leito marinho. Na Esas, o permafrost formou-se nas eras frias, como o período Pleistoceno, entre 2,6 milhões e 11,7 mil anos atrás. A última era glacial acabou com o fim do Pleistoceno, dando início ao atual período, mais quente: o Holoceno. As geleiras acumulavam grande quantidade de água no estado sólido, e, portanto, os níveis do mar eram mais baixos no Pleistoceno do que são hoje em até 100 metros. Boa parte da Esas fica, atualmente, a menos de 50 metros de profundidade, de forma que seu raso leito marinho já foi exposto a temperaturas do ar muito baixas. Os sedimentos da Esas congelaram-se a poucas centenas de metros de profundidade e tornaram-se permafrost, o qual armazena enorme quantidade de carbono orgânico. Se os sedimentos que contêm esse material derreterem, imensas quantidades de metano e dióxido de carbono serão produzidas e liberadas na atmosfera, aumentando drasticamente o efeito estufa, que já está causando mudanças climáticas globais. A intensa liberação de gás metano proveniente de depósitos desestabilizados no leito marinho teria consequências imprevisíveis em nosso sistema climático. Tais efeitos permanecem incertos, porque as fontes de metano no Ártico nunca foram incluídas no orçamento global de metano, tampouco foram consideradas nos modelos climáticos globais, que visam prever os cenários climáticos futuros para a Terra. O objetivo de nossas pesquisas é preencher essa lacuna do conhecimento, tornar o futuro mais previsível e, em última instância, ajudar nosso planeta e todos os organismos que nele existem, incluindo nós, seres humanos, a sobreviver.

BV — É possível prever as consequências das emissões de metano para o planeta?

Shakhova — O Ártico dispõe de grandes quantidades de metano, como um gás pré-formado, e de carbono orgânico, que pode servir de um substrato para a metanogênese (formação de metano) quando o permafrost derreter. Felizmente, o permafrost de áreas terrestres, que constitui a maior parte desse solo no mundo, permanece largamente estável. Já o permafrost submarino está passando por mudanças drásticas em seu sistema térmico, por causa do aquecimento da água do mar e de outros fatores. Lembrem-se de que, na Esas, o permafrost foi formado durante uma era glacial em que o atual leito marinho da plataforma não estava debaixo d’água, e sim exposto a temperaturas [do ar] congelantes. Quando as geleiras começaram a derreter e a Esas se encheu de água, os sedimentos congelados foram cobertos de água bem mais quente do que o ar, e, inevitavelmente, a temperatura no local começou a subir até o ponto de degelo. Esse fato é muito perturbador.
 

BV — O que pode ocorrer com o degelo do permafrost submarino?

Shakhova — Ele vedou depósitos de metano que estavam no fundo do mar há milhares de anos, tempo em que o metano continuou a se acumular nesses lugares. (...) Se esse material for liberado subitamente e em grande número, o aumento repentino dos níveis de metano na atmosfera poderá causar consequências imprevisíveis no clima do planeta. Infelizmente, nosso conhecimento atual ainda é limitado, e uma especulação maior a esse respeito seria irresponsável. (...) Precisamos dar seguimento a nossas pesquisas até que possamos determinar mecanismos para evitar esse cenário. Enquanto isso, tudo que puder ser feito para diminuir nossas emissões de gases de efeito estufa será um passo na direção certa.

“Temo que exista um problema com as instituições mais influentes — por exemplo, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas — que há alguns anos aparentavam ser mais progressivas e visionárias, mas, agora, tornaram-se mais inertes, conservadoras e obstrutivas quando se trata de aceitar novo conhecimento e incorporá-lo a seus domínios. Isso pode ser percebido de forma clara especialmente quando se refere à região ártica. Se isso não mudar, todos nós pagaremos um preço muito alto.”

BV — Qual é a expectativa quanto à 21ª Conferência sobre o Clima, a ser promovida pela ONU, em Paris?

Shakhova — Tento permanecer otimista quando se fala de cooperação internacional acerca de questões de mudanças climáticas. Também sei que quaisquer decisões tomadas e declarações anunciadas devem ser construtivas e viáveis. Para isso, responsáveis por decisões e políticas públicas devem receber informações imparciais e abrangentes a respeito dos processos e gatilhos efetivos que levam o sistema climático para fora da normalidade. Temo que exista um problema com as instituições mais influentes — por exemplo, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) ­— que há alguns anos aparentavam ser mais progressivas e visionárias, mas, agora, tornaram-se mais inertes, conservadoras e obstrutivas quando se trata de aceitar novo conhecimento e incorporá-lo a seus domínios. Isso pode ser percebido de forma clara especialmente quando se refere à região ártica. Se isso não mudar, todos nós pagaremos um preço muito alto.

BV — Qual é o maior legado que quer deixar com suas pesquisas?

Shakhova — O que um cientista pode deixar para a Humanidade é um novo conhecimento que ajudará as pessoas a manter o planeta vivo e saudável. Fazemos o trabalho no Ártico russo, com o clima severo deste, às vezes colocando nossa vida em risco, pelo futuro de nossos filhos e para que todos os indivíduos do planeta possam ter vida normal.


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