Água para todos

O que foi debatido no 8º Fórum Mundial da Água

Paulo Kramer

03/05/2018 às 09h53 - quinta-feira | Atualizado em 08/05/2018 às 12h53

Jorge Cardoso/8º FMA
Arquivo pessoal
PAULO KRAMER é assessor parlamentar e professor aposentado de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB).

Em ano de eleição geral, o ritmo de Brasília, a capital federal, costuma desacelerar já durante o primeiro semestre, com os políticos governistas ou de oposição voltando as atenções e as energias para a disputa política nos respectivos Estados. Este ano, porém, se mostrou um pouco diferente, e uma das razões dessa exceção foi o 8º Fórum Mundial da Água, que ocorreu de 18 a 23 de março.

Com essa edição abordando o tema “Compartilhando Água”, o evento é uma iniciativa do Conselho Mundial da Água (CMA). O fórum estreou em 1997, em Marrakesh, no Marrocos. Depois,  foi sediado em Haia, nos Países Baixos (2000); em Kyoto, no Japão (2003); na Cidade do México, no México (2006); em Istambul, na Turquia (2009); em Marselha, na França (2012); e em Gyeongju e Daegu, na Coreia do Sul (2015). Esta foi a primeira vez que o encontro teve lugar no Hemisfério Sul.

Nas palavras de Benedito Braga, presidente do CMA e titular da Secretaria Estadual de Saneamento e Recursos Hídricos de São Paulo — Estado que, recentemente, enfrentou severa crise hídrica —, “o Brasil tem um exemplo de governança de água interessante e sofisticado”, exemplo esse que a condição do país pelo fato de ser sede do oitavo fórum ajudaria a projetar mundialmente. Braga também destacou a participação conjunta de governos, da academia, de organizações e movimentos da sociedade civil e de empresas no debate, na proposição e no encaminhamento de soluções para o problema da falta de água potável na Terra, o qual constitui um dos maiores desafios da Humanidade no terceiro milênio.

Alguns números bastam para transmitir ideia da dimensão e da gravidade desse desafio nacional e planetário, bem como para indicar sinais promissores de conscientização e de mudanças. Tais números são os seguintes:

• Nos últimos cem anos, a demanda mundial por água potável multiplicou-se por seis.
• Segundo dados da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), sediada em Paris, na França, hoje no mundo 1,7 bilhão de pessoas vivem em áreas onde a procura pela água é maior que a oferta. Até 2050, esse número ultrapassará o de 2,3 bilhões de seres humanos.
• De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), atualmente 1,9 bilhão de indivíduos residem em áreas que poderão enfrentar escassez severa desse bem. Até 2050, tal número pode chegar a cerca de 3 bilhões de pessoas. A quantidade de pessoas que habita regiões afetadas por degradação, por desertificação ou por seca já atinge 1,8 bilhão. Ao mesmo tempo, 1,2 bilhão de seres humanos subsistem em locais sujeitos a inundações. Eles serão 1,6 bilhão em 2050.
• Com o agravamento da carência de água em escala global, conflitos geopolíticos por esse recurso tendem a se tornar mais frequentes e perigosos.
• Apesar de o Brasil possuir 12% das reservas mundiais de água potável, isso não significa que esse bem esteja em todos os lares do país. O censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revela que 9,8 milhões de domicílios em nossa nação ainda não têm acesso à rede de distribuição de água potável. A maior parte deles (5,29 milhões) localiza-se nas regiões Norte e Nordeste, principalmente nas áreas rurais, que dependem do abastecimento por meio de carros-pipa, de poços ou de cisternas. Com a falta de canalização interna, muitas dessas famílias permanecem vulneráveis a prolongados períodos de seca. Dados de estudo feito pelo Instituto Trata Brasil, com o apoio do Instituto Coca-Cola Brasil, e lançado no 8º Fórum Mundial da Água mostram que apenas 17,7% das habitações rurais no Norte são atendidas pela rede geral, porcentagem essa que sobe para 34,9% no caso das residências nordestinas.
• Ainda conforme informações do trabalho realizado pelo Instituto Trata Brasil, o déficit de esgoto sanitário atinge, na Região Nordeste, 75,3% e, no Norte, 91,4% das moradias. Somente metade da população de todo o Brasil dispõe de acesso a esgoto tratado.
• Parcerias entre governos  e o povo dos respectivos territórios têm ajudado a minorar essas dificuldades, por intermédio das organizações comunitárias de água e saneamento (Ocsas). No Ceará, por exemplo, o Sistema Integrado de Saneamento Rural (Sisar) promove a gestão compartilhada de água e de esgoto, atendendo 1,4 mil núcleos rurais e beneficiando 550 mil pessoas — o que corresponde a aproximadamente 25% da população rural do Estado.
• A iniciativa privada leva cada vez mais a sério sua parcela de responsabilidade no problema e na solução deste. Assim, o Instituto Coca-Cola anunciou, durante o oitavo fórum, um investimento de R$ 25 milhões até 2020 no acesso à água potável em cem áreas rurais e de baixa renda de oito Estados brasileiros. Há ainda uma modalidade de gestão hídrica inovadora, que já avançou mundo afora e começa a despontar no Brasil, chamada “economia circular da água”, a qual envolve racionalização do consumo, reúso após tratamento dos efluentes, reciclagem, recuperação de material residual e devolução à Natureza de quantidade de água igual à que tenha sido retirada ou maior do que esta.
• A ONU prevê que, até 2050, a produção mundial de alimentos precisará crescer 60% para atender 9 bilhões de pessoas. A agricultura absorve 70% da água consumida no planeta. Hoje, para produzir um quilo de arroz, são necessários 2,5 mil litros de água, e precisa-se de mais de 15 mil litros de água para produzir um quilo de carne (segundo site da organização Water Footprint Network).

Diego Ciusz

DIREITO DOS CIDADÃOS
O 8º Fórum Mundial da Água foi dividido, segundo o foco dos assuntos relacionados ao tópico central, em “Processo Temático”, “Processo Regional”, “Processo Político”, “Grupo Focal de Sustentabilidade” e “Fórum Cidadão”. No total, mais de 45 mil pessoas de mais de 150 países participaram de cerca de 270 debates a respeito de temas cruciais, como a governança conjunta do Estado, da sociedade e do mercado; alternativas de financiamento para a universalização da água potável e do esgoto sanitário; a gestão transnacional de recursos hídricos; e a poluição e despoluição.

Uma das conferências versou sobre o tópico “O Papel dos Parlamentos e o Direito à Água”. O ponto central do debate foi o que devem os sistemas representativos fazer para assegurar o acesso das populações a esse bem tão precioso. Mais de uma centena de parlamentares de diversos países — como a Argélia, a Argentina, a Bolívia, o Congo, a Coreia do Sul, a França, a Guiana, o México, o Marrocos, a Nigéria, o Paquistão, Portugal e o Suriname — dialogaram com os colegas do Brasil sobre uma pauta variada de grandes prioridades, entre as quais a solução de conflitos resultantes de migrações em massa e da agitação civil motivadas pelas crises hídricas; o planejamento para encarar e prevenir secas e enchentes nas cidades e nos campos, por meio de políticas e estratégias de reciclagem. Dezenas de senadores e deputados federais brasileiros de quase todos os partidos engajaram-se nessa discussão.

O CMA, partilhando das preocupações da ONU consubstanciadas em resolução da Assembleia Geral do próprio organismo em 2010, considera que os poderes legislativos são “o principal fórum para fazer convergir os diversos interesses em torno da água e para fortalecer as instituições dedicadas à gestão hídrica, no contexto do pacto federativo inerente a cada nação. Nos parlamentos, os temas da água e do saneamento básico são discutidos quando se definem os orçamentos anuais, quando se fiscalizam políticas públicas do Poder Executivo e quando se ratificam acordos internacionais”.

Cerca de um mês antes do evento, o Senado Federal, no qual tramitam mais de sessenta projetos de lei e outras proposições sobre o assunto, instalou a Subcomissão Temporária do Fórum da Água, com a finalidade de “fomentar o debate, ajustar opiniões e afinar o discurso brasileiro” naquela ocasião. Na semana de realização do encontro, o plenário da Casa aprovou e encaminhou à apreciação da Câmara dos Deputados ou à sanção do presidente da República três textos em apoio ao uso sustentável da água. Um deles é o Projeto de Lei do Senado (PLS) no 770/2015, que estabelece que o dinheiro arrecadado com a cobrança pela utilização dos recursos hídricos se destine a projetos e obras com vista a aumentar a quantidade da água dos rios e melhorar a qualidade desta — proposição apresentada pela Comissão do Meio Ambiente na conclusão de relatório de avaliação do Programa de Revitalização da Bacia do Rio São Francisco. Há também o PLS no 252/2014, que prevê a concessão de incentivos fiscais para a construção/adaptação de imóveis residenciais, comerciais e do governo federal com baixo consumo de água e de energia elétrica. Finalmente, seguiu para a sanção presidencial o Projeto de Lei da Câmara (PLC) no 51/2014, que torna obrigatória a instalação de torneiras com dispositivo de desligamento automático em todos os banheiros coletivos em prédios públicos e privados.

O manifesto internacional lançado ao fim da conferência parlamentar, com mais de cem assinaturas, reiterou o compromisso dos congressistas do mundo inteiro com “a segurança hídrica, a universalização do acesso à água potável e ao saneamento”, bem como com o “compartilhamento pacífico e justo” entre as nações e dentro delas desse líquido primordial para a vida.

São essas belas palavras, que terão tanto maior eficácia prática quanto maiores forem a atenção e a participação dos cidadãos a fim de alcançar esse generoso desiderato. Isso diz respeito a mim, a você, a todos nós, cuja distância de um refrescante copo d’água limpa e saudável reside no simples gesto de girar uma torneira, em benefício desta geração, das próximas gerações e, principalmente, dos bilhões de seres humanos em todo o orbe que não têm essa sorte.