Contra a eutanásia e pela vida: quem tem direito de decidir?

Sandra Albuquerque Fernández

11/05/2016 às 08h06 - quarta-feira | Atualizado em 22/09/2016 às 16h00

O Parlamento belga liberou, em fevereiro de 2014, uma lei que autoriza a eutanásia para menores, sem limite mínimo de idade. A votação teve 86 manifestações a favor, com 44 contra e 12 abstenções.

O que é de fato esse procedimento? O que ele significa?

A palavra eutanásia vem do grego, podendo ser traduzida como "boa morte" ou "morte apropriada". O termo foi proposto por Francis Bacon (1561-1626), em 1623, em sua obra Historia vitae et mortis, como o "tratamento adequado às doenças incuráveis". De maneira geral, entende-se por eutanásia quando uma pessoa causa deliberadamente a morte de outra que está mais fraca, debilitada ou em sofrimento. Neste último caso, ela seria justificada como forma de evitar uma dor acarretada por um longo período de enfermidade (Fonte: Portal Bioética).

Brian Hoskins/SXC

Alguns dos principais argumentos para sua realização são o alívio do padecimento para o paciente e o uso do direito individual de escolha, visto vivermos, a grande maioria, em sociedades democráticas. O médico Genival Veloso de França, professor titular de Medicina Legal nos cursos de Medicina e Direito da Universidade Federal da Paraíba, destaca: "O ato de promover a morte antes do que seria de esperar, por motivo de compaixão e diante de um sofrimento penoso e insuportável, sempre foi motivo de reflexão por parte da sociedade. Agora, essa discussão tornou-se ainda mais presente quando se debatem os direitos individuais como resultado de uma ampla mobilização do pensamento dos setores organizados da sociedade e quando a cidadania exige mais direitos. Além disso, surgem cada vez mais tratamentos e recursos capazes de prolongar por muito tempo a vida dos pacientes descerebrados, o que pode levar a um demorado e penoso processo de morrer".

As doenças terminais e o preparo médico para enfrentá-las

A revista BOA VONTADE publicou, na edição nº 202, palestra do cardiologista dr. Osvaldo Hely Moreira, intitulada "Eutanásia — frente às evidências da continuidade da Vida após a morte do corpo físico", proferida durante a segunda edição do Fórum Mundial Permanente Espírito e Ciência, da Legião da Boa Vontade, realizada no Parlamento Mundial da Fraternidade Ecumênica, na cidade de Brasília, DF, em outubro de 2004. Seguem trechos de sua palavra:

"(...) Os que se manifestam a favor da eutanásia estabelecem que o indivíduo doente é inútil, e que entre ficar sofrendo e morrer ele escolheria o mal menor: morrer. (...) Outro argumento para a eutanásia é de ordem financeira na saúde. Um questionamento em moda: por que ficar gastando dinheiro em pessoas com doenças incuráveis e deixar de tratar pessoas com doenças curáveis? E, por último, o entendimento deturpado da reencarnação pode levar alguém a concluir o seguinte: 'Como vou reencarnar, eu vou me matar de uma vez. Vou ter outra chance'. Para o médico, o ato da eutanásia é proibido pelo código de ética médica (...). Podemos questionar: 'O que é um doente terminal?', 'Qual o grau de certeza que podemos ter de que ele é terminal?', 'O médico acertou o diagnóstico?'. Digo isso com propriedade, porque sou médico, e médico erra. 'Quando aplicar a injeção letal?', 'Em que momento está na hora de se aplicar a eutanásia?'. (...) Quando da impossibilidade de tratamento de certos casos, percebemos que os cursos de Medicina também não preparam o profissional para tratar a dor de um doente terminal. Tanto assim é, que se pesquisarmos os pacientes que pedem a eutanásia, no intuito de suicidar-se, se tivessem não apenas suas doenças físicas, mas também suas questões emocionais e espirituais tratadas, mudariam de opinião. Vejam, portanto, que a eutanásia é, muitas vezes, proposta por falha na abordagem médica".

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No portal www.bioetica.ufrgs.br, coordenado pelo prof. Dr. José Roberto Goldim, do Núcleo Interdisciplinar de Bioética, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, encontramos amplo estudo sobre a ética na Medicina. O professor Goldim destaca o juramento de Hipócrates (considerado o precursor da Medicina), que afirma: "Eu não darei qualquer droga fatal a uma pessoa, se me for solicitado, nem sugerirei o uso de qualquer uma deste tipo". Já nos primórdios dos estudos médicos, Hipócrates condenava a prática da eutanásia e do suicídio assistido. Destaca ainda o professor Goldim: "A tradição hipocrática tem acarretado que os médicos e outros profissionais de saúde se dediquem a proteger e preservar a Vida. Se a eutanásia for aceita como ato médico, eles terão também a tarefa de causar a morte. A participação na eutanásia não somente alterará o objetivo da atenção à saúde, como poderá influenciar, negativamente, a confiança para com o profissional, por parte dos pacientes. A Associação Mundial de Medicina, desde 1987, na Declaração de Madrid, considera a eutanásia como um procedimento eticamente inadequado"*¹.

Processo seletivo

No início do século 20, especialmente durante a Segunda Guerra Mundial, a História foi testemunha do uso abusivo da força pelo nazismo. Cada obra literária ou cinematográfica lançada sobre aquela época suscita discussões intermináveis sobre o processo seletivo da raça pura usado pelos seguidores de Hitler (1889-1945). Esse período histórico coloca em xeque o sentimento de humanidade e nos deixa envergonhados com a prática de atos tão violentos. Voltamos ao professor Goldim: "Na Europa, especialmente, muito se falou de eutanásia associando-a com eugenia*². Esta proposta buscava justificar a eliminação de deficientes, pacientes terminais e portadores de doenças consideradas indesejáveis. Nestes casos, a eutanásia era, na realidade, um instrumento de 'higienização social', com a finalidade de buscar a perfeição ou o aprimoramento de uma raça, nada tendo a ver com compaixão, piedade ou direito para terminar com a própria vida".

Para os defensores da eutanásia, essa prática é humanista, visto ser o fim de um sofrimento indesejado. Porém, em que ela difere da experiência dos nazistas durante a Segunda Guerra?

A distinção estaria, no primeiro caso, nesse procedimento em receber a leitura de abuso de poder e, no segundo, a de livre escolha? A eutanásia pode receber definição própria segundo o período histórico, mas qual a diferença de um caso para o outro? São questões nas quais devemos pensar com cautela antes de formarmos uma opinião que, no futuro, possa trazer arrependimento e talvez, aí, seja tarde demais.

Tempos modernos, ações racionais.

No cotidiano, é cada vez mais presente a racionalidade nas ações. O caráter positivo está na atribuição de responsabilidades individuais, já o negativo está nas atitudes sempre mais racionais que geram o insolidarismo, a impessoalidade, o individualismo, a luta pelo bem-estar máximo. É nessa confusão de sentimentos racionais contraditórios que está o debate da eutanásia.

Existe uma teoria muito refutada entre os críticos que é o "utilitarismo". Nele, um ato é correto se produz as melhores consequências, ou seja, resultados para o bem-estar humano que sejam, pelo menos, tão bons quanto os de qualquer alternativa (Dicionário do Pensamento Social do Século XX). Essa teoria é rejeitada justamente porque escancara o hedonismo, isto é, a procura do prazer individual, que somente se plenifica por meio de sua extensão para o maior número possível de pessoas (Dicionário Houaiss). Aplicada ao utilitarismo, forma a dupla da realização do bem-estar como finalidade última.

A busca pela satisfação física e moral pode produzir consequências extremas como, por exemplo, trazer a defesa do alívio imediato, do bem-estar do indivíduo, do resgate da dignidade. A vida e a morte recebem discursos convincentes com argumentos defendidos conforme a crença em valores éticos, científicos e espirituais. O perigo está na forma de conduzir a opinião pública por um bloco de defensores que estimulam o sentimento da compaixão, inflamando a consciência, o que impossibilita o indivíduo de pensar nas consequências da aprovação de uma lei como a da regulamentação da eutanásia.

O poder do discurso

Costuma-se dizer em Política que quem vence não é a ideia, mas o discurso. Conhecedores dessa máxima, os marqueteiros usam e abusam do poder das frases para fazer valer a intenção contida nos entremeios de uma campanha. Isso é preocupante porque em nome de afirmativas, tais como "pela liberdade de escolha", "pela defesa da democracia", muitos excessos podem ser cometidos. Talvez algo que soe como democrático pode, na verdade, ser muito mais controlador.

Michel Foucault (1926-1984), em Microfísica do Poder, destaca que o corpo é o primeiro passo para a dominação, e continua: "Minha hipótese é que com o capitalismo não se deu a passagem de uma medicina coletiva para uma medicina privada, mas justamente o contrário; que o capitalismo, desenvolvendo-se em fins do século 18 e início do século 19, socializou um primeiro objeto que foi o corpo enquanto força de produção, força de trabalho. O controle da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica". Na análise de Foucault, o corpo possui valor na sua relação direta com a força produtiva. Se o olharmos somente por este prisma, estará sendo definido previamente quem merece ou não sobreviver.

Ao analisarmos o corpo, devemos fazê-lo pelo prisma do Capital de Deus*², produtivo, entretanto imensurável na relação de mercado, tornando-se um bem espiritual. Tratando-o como célula de manutenção da Sociedade Solidária Altruística Ecumênica, as questões, mesmo consideradas impossíveis, passam a receber soluções. Escreve Paiva Netto em Reflexões da Alma: "O organismo humano é a mais extraordinária máquina do mundo. Mesmo assim falha. Contudo, com Amor até os remédios passam a ter melhor resultado. Nossos Irmãos que padecem com o vírus do HIV e os que sofrem de outros males físicos, mentais ou espirituais, precisam, em primeiro lugar, de Amor Fraterno, aliado ao socorro médico devido. Se a pessoa se sentir humanamente amparada, criará uma espécie de resistência interior muito forte, que a auxiliará na recuperação ou na tolerância diante da dor".

O Dr. Osvaldo Hely Moreira mencionou que muito sofrimento poderia ser evitado se a abordagem médica fosse conduzida de forma diferenciada. Paiva Netto mostra-nos exatamente a chave para tratar do médico-paciente-família: o Amor. Não um amor nascido do sentimento de pena, mas o Amor Fraterno, gerador de respeito à vida, fundamento da Boa Vontade, da Esperança, da Ética, da Lei Universal de Cidadania Ecumênica.

"Eutanásia do planeta"

Tudo o que existe no planeta é vida — água, terra e ar. Em defesa desses recursos naturais nascem iniciativas da sociedade civil, fundações, cúpulas governamentais. Mesmo assim, a qualidade de vida continua ameaçada pela ação inescrupulosa do homem. Um suicídio assistido? Uma pré-eutanásia? Há muito o que pensar no agir do ser humano. "Desumanidade atrai desumanidade", e prossegue Paiva Netto: "o mundo vem construindo o seu Armagedom, tijolo a tijolo. Abyssum abyssus invocat: o abismo atrai o abismo, advertia o salmista. Não é à toa que cresce a violência no mundo. Vejam o caso da eutanásia. A argumentação dos que a defendem é plena de 'caridade' — 'é para livrar o doente (de preferência os idosos) da dor, do sofrimento'. Mas o que se tem ao final? A barbaridade, como a que foi descoberta, daquelas quatro cruéis auxiliares de enfermagem da Áustria. Muita gente jovem e adulta às vezes esquece-se de que um dia será idosa também... A Humanidade precisa cada vez mais de humanidade, caso contrário, os homens continuarão promovendo, com sua ação suicida, a eutanásia do planeta, isto é, a morte dos rios, das florestas, porque a morte dos seres vegetais e irracionais é também um suicídio dos seres racionais".

Democracia é sinônimo de Vida

Lutar pela Democracia é lutar pelo direito à vida. A pergunta que deve estar em debate não é quando decidir pelo término da vida, mas, sim, o questionamento quanto a políticas públicas de incentivo a ela. Há um artigo do jornalista Paiva Netto em que ele ressalta que "o desamor ameaça a todos com destruição feroz" e, mais: "A Vida não acaba com a morte e tem seu começo antes da concepção carnal, porque o Espírito antecede o corpo". A conclusão de que o Espírito antecede o corpo nos convida a pensar que há um planejamento com início e fim para uma existência.

A compaixão não pode gerar atitudes que glorifiquem a morte. O sofrimento de um é o de todos. Saber sublimar a dor pode ser o primeiro passo para a solução do impasse criado entre ética e alívio do padecimento. A sociedade apresenta que o vencedor é aquele sadio quanto ao corpo e bonito quanto à estética. Por viver sob esse padrão, deturpamos o sentimento, os valores, a ética e passamos a nos encarar (mesmo olhando ao espelho e vendo refletida a nossa imagem) como se fôssemos outra pessoa e não aquela revelada. Essa exaltação pelo belo e pelo forte discrimina o outro, ou aquele que não se encaixa nesse padrão. Pode parecer uma argumentação fora de propósito ao assunto, mas se verificarmos que, ao desejar a eutanásia (mesmo sob aspecto de forte sofrimento), estamos negando o próprio físico, verificaremos que é a não aceitação desse mesmo corpo que torna o sofrimento insuportável.

Paiva Netto declara que somente a reeducação do ser humano pela consciência ético-espiritual permitirá entender que mesmo algo se apresentando como insolúvel consegue, pela vivência em Sociedade Solidária Altruística Ecumênica, encontrar solução sob as vibrações do Amor, que ele chama de A Estratégia de Deus.

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*¹ Veja em http://www.wma.net/en/30publications/10policies/e13b/.

*²Eugenia — O estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações, seja física ou mentalmente.

*³ Capital de Deus — Tese do jornalista Paiva Netto em que o cidadão integral, ou seja, corpo e Espírito, é o centro da Economia, da Filosofia, da Política, da Religião, da Ciência, da Cultura, enfim, de todo o ramo do saber material-espiritual, tornando o seu Espírito Eterno a chave para a solução dos problemas dos povos.