
Confira a entrevista exclusiva do jornalista Myltainho à revista Boa Vontade
Wellington Carvalho
10/05/2014 às 15h11 - sábado | Atualizado em 22/09/2016 às 16h01
Em homenagem ao jornalista Myltainho, que retornou à Pátria da Verdade neste sábado, 10, o Portal Boa Vontade destaca a entrevista exclusiva que ele concedeu à revista Boa Vontade, na edição 221, de 2008. Nela, Mylton Severiano falou das circunstâncias pessoais que o levaram a entrar no jornalismo, bem como de outros assuntos e planos que tinha para sua carreira. Acompanhe:
BOA VONTADE — Como foi a infância?
Myltainho — Eu sou filho de um pai e de uma mãe semi-alfabetizados. Tive a sorte de ter pais maravilhosos. Meu pai, Bernardo Severiano da Silva, é o meu herói. Minha mãe, Julieta Mazzola da Silva, era cristã; meu pai entrou para o Partido Comunista. Autodidata, lia muito, e o maior bem que ele me deu foi me colocar para estudar. É a minha gênese. Quando tinha 5 anos, me lembro de um primeiro presente que ele me deu, muito instigante. Era uma caixa, com cubos de madeira, que deve existir até hoje. Cada face do cubo tem uma letra para você se alfabetizar. Logo depois, começou a me dar livros. Assim eu comecei a ler.

Jornalista Myltainho com a revista Jornal dos Jornais, cuja entrevista de capa com o dirigente da LBV foi feita por ele.
BV — Nessa época você já sonhava em fazer comunicação? O que o despertou?
Myltainho — Estava escrito! Como é importante ter pais legais. Naquela época meu pai gostava de caçar e, um dia, me levou junto. Fiquei fascinado! Chegamos a uma fazenda que tinha Mata Atlântica e começou a chover muito forte, um temporal com raios; a gente saiu correndo. Encontramos uma cabana onde morava um jovem casal de camponeses, muito pobres, com duas crianças, uma de colo, e outra pequenina de 2 ou 3 anos. Meu pai já era candidato a vereador, um sujeito muito falante, simpático. Ele pediu licença ao casal para olhar no fogão de lenha o que tinham para comer. No caldeirão só havia feijão e ele me mostrou: “Filho, olha aqui o que eles vão comer”. Virou-se para eles e perguntou o que mais comeriam. “Farinha, senhor”, responderam. Quando parou de chover, e a gente ia embora, meu pai entrevistou os dois, perguntou quanto ganhavam, de onde vieram, enfim... foi o jornalista. No caminho de volta, eu falei que ia escrever o que contaram e mostrar para a professora. Ele disse: “Não. Escreva, mas me dê, vou mandar para o Terra Livre”. Esse era o nome de um jornal agrícola, dos camponeses e pequenos agricultores. Desse modo, publiquei com 8, 9 anos meu primeiro texto, relatando o que tinha visto, que eu achava aquilo muito triste. Até então, não vira uma coisa que tivesse me tocado assim, penso que ali nasceu o jornalista; a vocação baixou.
BV — E daí trabalhou em vários jornais brasileiros, certo?
Myltainho — Trabalhei. Eu vim a São Paulo fazer curso de Direito, cheguei a entrar na São Francisco, mas, ao mesmo tempo, procurei emprego; precisava trabalhar, meu pai não tinha condições de me sustentar aqui. Um amigo, Woile Guimarães, já tinha vindo na frente; a gente era de Marília/SP. Ele é jornalista, empresário de comunicações, já estava havia um ano na Folha de S.Paulo e me arrumou um lugar lá. Quando entrei e vi aquela coisa toda, me desencantei do Direito e me apaixonei na hora por uma redação. Tinha começado a estudar Direito pela inércia e também porque meu pai queria. Em seguida, em 1964, com o golpe militar, o meu pai foi preso e aí tive o álibi para abandonar a faculdade e mergulhar de sola no jornalismo. Eu precisava segurar as pontas da família e então fui embora. Trabalhei em vários canais de TV e em muitos veículos, como o Estado de S.Paulo, Jornal da Tarde, uma porção deles.
BV — Quem você destaca como fundamental na sua formação dentro do jornalismo?
Myltainho — No começo, o meu pai. Depois que ele foi solto, ficou meio aperreado, como ele dizia, chateado. Logo sentiu que aquilo era uma paixão para mim, então entendeu e me deu todo o apoio. Depois dele, grandes amigos, verdadeiros mestres, o Paulo Patarra, que foi o diretor de redação da revista Realidade, e o Sérgio de Souza, meu professor de texto. Ele me ensinou praticamente tudo: a aperfeiçoar a ideologia, o jornalismo a serviço do Povo, do mais fraco, na defesa das causas populares. Esses são os principais. Aí tem o convívio com colegas como José Hamilton Ribeiro, Ignácio de Loyola Brandão, José Carlos Marão, Hamilton Almeida Filho, enfim, cada um ensinou alguma coisa, e você também ensina para eles.

Caminhos que o jornalista Mylton Severiano percorreu para consolidar-se como um dos grandes nomes da comunicação brasileira.
BV — Quais reportagens mais o marcaram?
Myltainho — Praticamente tudo o que fazia o José Hamilton sempre foi muito bom, desde a revista Realidade. Na televisão, me lembro de uma reportagem no programa Globo Rural, no qual ele está até hoje. Nela, mostrava, para a gente da cidade, como na roça as pessoas dão um jeito para as coisas que para nós, urbanos, não trazem preocupação como, por exemplo, mandar uma carta. A gente a põe no correio e fim de papo. Só que na reportagem ele mostra um sujeito na roça que vai com o caminhão de manhã buscar o leite e depois volta, recolhendo aqueles latões na porta da fazenda. Aí, ele aproveita para levar cartas, bilhetes, encomendas, o sapato que o pai manda para um filho. É bonito isso, sabe? Na última fazenda em que ele entra, para encerrar, há um cara com um papagaio, em cima da árvore, que canta um monte de música, e o José Hamilton termina a reportagem com o pássaro cantando. Acho aquilo uma obra-prima. No jornalismo escrito, na revista Realidade, praticamente tudo era muito bom, porque havia grandes repórteres. O Carlos Azevedo fez uma reportagem que considero uma pequena obra-prima: “Os maridos assassinos de Minas Gerais”, em 1980. Houve uma epidemia de maridos matando mulheres em Minas, desde os pobres até a classe alta. Um desses casos o Azevedo foi fazer em Belo Horizonte. Essa reportagem, como texto jornalístico-literário, cito como uma obra-prima. Eu não fui muito repórter, mas fiz algo que me agradou na revista: um trabalho sobre os 50 anos da Revolução Russa; eu me abeberei em alguns livros lá e escrevi um pequeno ensaio sobre o assunto, e até hoje tem gente que se lembra daquele trabalho.
BV — Quais são os planos?
Myltainho — No momento, me preparo para escrever um livro sobre a revista Realidade. Já entrevistei o José Hamilton e mais umas 18, 19 pessoas que estiveram lá. De uns anos para cá, o Hamilton e eu, da Caros Amigos, somos procurados anualmente por meia dúzia de estudantes que farão seu TCC (trabalho de conclusão de curso) sobre a Realidade. Mas que história é essa? Uma revista que há quase 50 anos continua sendo motivo de trabalhos! Os guris vêm entusiasmados quando o professor tem um exemplar ou fala da revista. Eles vão lá no arquivo e descobrem. Falei que ia escrever a história da revista de um jeito emocional, como tudo que gosto de fazer, com emoção. Estou entrevistando ex-colegas meus, não só querendo saber o ponto de vista profissional, mas também a história de cada um, como é que chegaram lá; e tenho descoberto coisas gostosas. Alguns pontos comuns dessa turma é que eram autodidatas, gostavam muito de ler; desde a infância quase todos começaram lendo Monteiro Lobato. Não é curioso isso? E era tudo gente de classe média, média mesmo, de pobre para remediado, como se diz. É uma história interessante de contar. Esse é um projeto que estou tocando ali na paralela, vou começar a pôr no papel.
BV — Por falar em emoção, você a considera importante no jornalismo?
Myltainho — Acho que o jornalismo existe para informar, divertir e emocionar também, por que não? Uma boa história com uma boa carga de emoção, só de colocá-la no ar, na televisão, no rádio ou no papel, se você transmiti-la fielmente, transmitirá emoção. Não que você vá se derramar e cometer pieguice. A Humanidade precisa disso, a gente precisa de emoção, de poesia. [N. L. e R. O.].