Desequilíbrio insustentável

Em entrevista exclusiva, o economista Sérgio Besserman afirma que a humanidade vive uma crise climática sem precedentes e que ela só será vencida se houver empatia e cuidado com os mais pobres e vulneráveis

Leila Marco e Alan Lincoln

05/08/2022 às 08h41 - sexta-feira | Atualizado em 09/08/2022 às 11h37

Marcelo Camargo/Agência Brasi

Não é de hoje que cientistas de todo o planeta chamam a atenção para os dados alarmantes da crise climática. Os relatórios do Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da Organização das Nações Unidas (ONU), a exemplo do último, divulgado em 4 de abril deste ano, ressaltam o incremento das concentrações de gases de efeito estufa e a relação disso com o aumento das altas temperaturas, de chuvas mais intensas e inundações, bem como de secas prolongadas e de enchentes em regiões costeiras, ocasionadas em parte pelo avanço do nível do mar. Para falar desse tema, que é de extrema urgência, a revista BOA VONTADE conversou com o economista Sérgio Besserman, coordenador estratégico do Climate Reality Project — Brasil*1 e curador de clima e sustentabilidade do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro/RJ. Entre seus focos de atuação e pesquisa estão Economia do Meio Ambiente, Desenvolvimento Econômico Sustentável, História do Aquecimento Global e Mudanças Climáticas.

Divulgação

Sérgio Besserman

No bate-papo, Besserman foi categórico ao destacar que, para atenuar essa catástrofe ambiental que se avizinha, necessária se faz uma mudança profunda e imediata na forma como nos relacionamos como sociedade. Ele adverte que, apesar de esses efeitos serem sentidos por todos, o impacto deles ganha maior intensidade, gerando enorme sofrimento, naqueles que são mais pobres e vulneráveis, hoje já afetados com a insegurança alimentar, moradias precárias, transportes coletivos ineficientes e a falta de acesso à internet de qualidade. Segundo o ambientalista, as implicações desse momento singular que vivemos exige uma transformação de mentalidade, em que o bem-estar social da população seja prioridade: “Não podemos perder o direito à dignidade humana. É preciso enfrentar esses grandes desafios e cuidar daqueles que precisarão de mais proteção”.

BOA VONTADE — Professor, para que possamos ter uma mudança de comportamento da humanidade, um olhar distinto quanto à preservação do meio ambiente, reduzir ou zerar a emissão de carbono é o caminho? Ele é longo?

Sérgio Besserman — É uma alegria estar aqui com vocês novamente. Vou tentar responder da forma simples, pois o assunto é bem complexo e a resposta é sim e não, ao mesmo tempo. É sim, porque dispomos de todo o conhecimento necessário para isso, mas já não é mais possível evitar problemas, tanto no clima como na extinção da vida, das espécies. Nós iremos extinguir, matar, 20% das espécies do planeta, se tudo der certo... Talvez até menos, quem sabe, com o sequenciamento genômico, zoológicos do mundo inteiro deixando de ser só de visitação, ou mesmo diminuindo um pouco [a quantidade de público] — ninguém precisa conhecer pessoalmente uma girafa em um jardim zoológico, ou um hipopótamo; pode fazer isso pela internet. Com isso, os jardins zoológicos passariam a se dedicar, todos eles, com o seu pessoal maravilhoso e a sua infraestrutura, à proteção das espécies ameaçadas, a exemplo do lobo-guará, da ararinha azul etc. O mesmo ocorre com o clima, [a meta de limitar] a temperatura média global a menos de 1,5ºC [em relação aos níveis pré-industriais] está difícil. Já chegamos a 1,1ºC, que está trazendo várias problemáticas, especialmente para os mais pobres, e a gente está assistindo a isso nos noticiários, a problemas que nunca tínhamos visto antes. Neste momento, há uma onda de calor na Índia, um país com 1,3 bilhão de habitantes, em que a temperatura está em torno dos 52°C. Isso nunca havia acontecido antes.

BV — Pode nos dar mais detalhes dessa necessária virada sustentável?

Sérgio Besserman — Temos todo o conhecimento, as tecnologias mais modernas e também recuperamos os saberes dos nossos povos indígenas, no Brasil, de quilombos, de pessoas que vivem em contato com a Natureza. Que conhecimento é esse que perdemos e a Ciência só resgatou há 30 anos? De que não somos donos da Terra, não somos sequer hóspedes, mas, sim, parte da vida do planeta e dependemos dela do mesmo jeito que ela também está relacionada a nós. A boa notícia é que sabemos como fazer o reflorestamento para sequestrar o carbono e recuperar a vida, sem diminuir a produção de alimentos; pelo contrário, aumentando. Existem outras tecnologias, como a energia solar, que hoje é mais barata do que as que aquecem o orbe, a energia eólica, que está se tornando mais acessível, e essas tecnologias vão continuar evoluindo e ajudando a reduzir a desigualdade, sempre atentos para a chamada “justiça climática”, para proteger quem está mais vulnerável no início do processo todo. Isso é um mundo melhor, com mais compaixão e mais empatia, é o lado “sim”. Agora, o “não” já sabemos há pelo menos 30 anos, desde a Rio-92*2. Na época, já tínhamos modos de começar a resolver. No entanto, não o fizemos, mas a consciência ecológica aumentou, [principalmente a dos] jovens. A mídia divulga, e vocês [da LBV] fazem esse trabalho nas redes sociais, que a juventude está muito antenada, está mudando hábitos alimentares, de transporte... O drama da pandemia nos trouxe essa coisa do on-line que, sozinho, é ruim, porque a gente quer encontrar as pessoas, mas será que precisa mesmo, de manhã cedo pegar um ônibus e ir para o centro da cidade, aquecendo tanto o planeta? Aí, tem uma reu­nião de uma hora e pega o ônibus... E é uma população de quase 8 bilhões de habitantes. Nós continuamos, todo ano, aumentando as emissões em vez de diminuí-las, o tempo está ficando curto. Uma sociedade cresce quando homens e mulheres plantam árvores que nunca chegarão a ver a sombra, plantam para os filhos, os netos, para todos, mas nós nunca fizemos isso. Cada geração viveu a sua vida, depois, a geração seguinte que vivesse a sua. Agora não dá mais [para agir assim]. Vamos conseguir fazer essa mudança? Isso será em um tempo mais longo? Isso é o próprio significado da consciência.

BV — Por que é relevante, neste contexto globalizado, observarmos a questão da justiça climática, levar em consideração as camadas mais pobres da sociedade?

Sérgio Besserman — Essa pergunta é fundamental. Os impactos da crise ecológica global são graves, mas é possível evitar que eles sejam gigantescos. Só no ano passado, morreram pessoas na Alemanha, em porões, por conta de inundação, algo que os alemães achavam que não era possível se dar em um país tão desenvolvido; e uma onda de calor assolou a costa leste dos Estados Unidos e do Canadá, também provocando mortes. Neste ano, [temperaturas altas ocorreram] em uma cidade chinesa de quase 10 milhões de habitantes. O Rio de Janeiro sofreu com diversas enchentes, como nunca antes. Esses fatos irão se dar cada vez mais, além de problemas de saúde. O calor provoca enfartes, acidentes vasculares cerebrais, permite que a larva do Aedes aegypti se transforme em mosquito o ano inteiro. Há dez anos, a dengue [tinha uma maior incidência] de novembro a abril; agora, temos de lidar com dengue, zika, chikungunya, a febre do Mayaro o ano inteiro, pode até estar muito frio, mas terá ali uns 15 dias, 10 dias, com calor suficiente para a larva eclodir e virar mosquito. Todos terão problemas, [tanto] a cidade mais rica dos Estados Unidos como a mais pobre da África, mas é diferente o impacto. Eu vou dar um exemplo bem simples: meus pais deixaram para mim e para os meus irmãos, Marcos, médico e pesquisador da Fiocruz, e Cláudio — o Bussunda do [programa] Casseta e Planeta — falecido, uma pequena casinha de condomínio na serra em Teresópolis/RJ. É muito bom, meu irmão Marcos mora lá. Se houver uma enxurrada mais forte que a usual e levar a casa, desde que o meu irmão não esteja lá, será chato, porque a perderemos, ele terá de morar em outro lugar, mas é vida que segue. Agora, se essa enxurrada leva a moradia de uma família em uma comunidade aqui do Rio de Janeiro, mesmo que ninguém morra na comunidade, onde as famílias são mais vulneráveis, três gerações serão afetadas (idosos, adultos, crianças...). Os adultos terão de trabalhar para refazer o que tinham; e as crianças perderão o dinheiro que poderia ter sido utilizado para a escola, para a saúde, para comprar roupa, livro, que será usado para reconstruir o imóvel. Então, é uma situação completamente diferente, e isso afeta a todos no planeta que sofrem com a desigualdade, com a pobreza e o racismo estrutural.

BV — Essa realidade é ainda mais presente em países como o Brasil?

Sérgio Besserman — Os exemplos brasileiros são melhores. Quando falta água ou luz, onde é que demora mais para voltar? Na zona sul do Rio de Janeiro ou em Belford Roxo? Nós vamos ter o Censo Demográfico realizado pelo IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística] agora em 2022, importantíssimo para as políticas públicas, e saberemos, por exemplo, quantos lares são chefiados por mães solo. Acredito que dará um número perto de 30% no Rio, maior no Brasil. Pense que essa mulher está trabalhando no centro do Rio de Janeiro e que a casa dela fica em Jacarepaguá, em um lugar onde inunda muito, como a comunidade do Anil e de Rio das Pedras. Aí, ela está voltando para a residência e ocorre uma dessas inundações, tão comuns na capital fluminense, mas que vão se tornar ainda mais frequentes, acontecerão o tempo todo e mais fortes do que antes. Ela está no ônibus e quer notícias dos filhos, porque sabe que o seu bairro inunda, e as crianças podem estar em casa, na creche, com uma amiga que toma conta delas... Imagine que haverá mais dificuldade para essa mãe ter notícias de seus filhos em uma situação de desastre ambiental. Esse e centenas de outros casos ressaltam a importância do assunto “justiça ambiental”. Não podemos perder o direito à dignidade humana. É preciso enfrentar esses grandes desafios e cuidar daqueles que precisam de mais proteção.

BV — O que é economia verde e qual é a dimensão dela nesse momento crucial para os destinos humanos?

Sérgio Besserman — Economia verde é, na minha compreensão, um grande guarda-chuva no qual o verde entra mais como esperança e regeneração da Natureza, a fim de que as formas de fazer a produção, o consumo e a distribuição dos bens mudem, não apenas de tecnologias. Porque o desenvolvimento da civilização nos últimos 250 anos teve alguns aspectos espetaculares, a expectativa de vida aumentou tremendamente, a mortalidade infantil caiu bastante, descobrimos os antibióticos... Agora, com a pandemia, tivemos vacina em um ano e pouquinho, foi efetivamente uma conquista da humanidade. Mas, ao mesmo tempo, esse tipo de desenvolvimento, que nos trouxe tanto bem, gerou duas faixas de problemas: um é que certas coisas que pertencem a nós, humanos, deixaram de ser atendidas. Como uma aldeia indígena sofrendo tantas dificuldades, apesar de estar em harmonia com a Natureza, mas com muito menos recursos. Em um mundo de quase 8 bilhões de habitantes, justo neste momento em que temos tantos recursos, estamos mais ricos, que existem tecnologias inimagináveis, quase um bilhão de pessoas vivem em insegurança alimentar e algumas centenas de milhões passam fome. Isso não é da nossa humanidade. Então, essa desigualdade tão grande, a pobreza que não precisava mais existir nesse nível, sugere também que esse tipo de desenvolvimento foi muito bom, e o que ocorreu de bom nele deve continuar, como a inovação tecnológica dinâmica, mas temos coisas para corrigir. Há alimentos pra todos. A fome hoje é falta de dinheiro ou de acesso aos produtos, não é de produção. Mas, além desses problemas sociais, esse desenvolvimento utilizou aquilo que a Natureza nos oferece de uma forma muito descuidada, até meio ofensiva. Ao contrário do que costumam pensar, o descuido com a Natureza não é uma dificuldade em si para ela, o tempo dela é outro, é de dezenas de milhões de anos, inimaginável pra nós. Para a Natureza, é assim: “Eu estou muito doente, porque têm esses humanos me usando sem nem mesmo respeitar o tempo que preciso para me recuperar”. Quem perde, digamos assim, é a Natureza do nosso tempo, porque, quando ficar boa, ela será outra. Já aconteceu dezenas e dezenas de vezes na história do planeta Terra. Ela muda. Antes era um dinossauro, depois viemos nós. A resiliência dela é a diversidade, a capacidade de se reerguer... Esse recado não tem sido ouvido pelos tomadores de decisão, pelos economistas, nós, economistas, costumávamos até teorizar de que era possível, sim, utilizar para todo o sempre a Natureza da Terra sem isso nunca causar problemas. Isso não tem nenhum sentido. E os desafios começaram a acontecer e a humanidade se movimentar... Ocorreu a Conferência de Estocolmo, em 1972; agora, a Estocolmo+50. Tivemos também a maior reunião de chefes de Estado de toda a história humana, no Rio de Janeiro, a Rio-92, e ali se firmou uma série de acordos. Todo ano tem reunião do clima, da biodiversidade, mas, na prática, nós continuamos a esquentar o planeta, a extinguir as espécies, há muita discussão, acordos, mas os interesses econômicos e políticos e os hábitos e a vida, olhando só para o dia seguinte, e não para daqui a 10, 20, 50 anos, fizeram com que a situação fosse se agravando cada vez mais. Então, economia verde é tudo, economia circular, bioeconomia, é reduzir as emissões de carbono, que talvez seja o principal a se fazer.

BV — A economia mundial dependerá cada vez mais dessa nova visão?

Sérgio Besserman — A crise tornou-se tão grave que não há possibilidade de haver crescimento econômico sem enfrentar esse desafio. Por quê?  Se o sujeito constrói mais termelétricas a carvão, usa mais petróleo, a crise agrava-se. Dois terços das reservas de petróleo do mundo já descobertas nunca poderão ser usados se quisermos manter a [temperatura média do orbe abaixo de] 1,5ºC até o fim do século. (...) Da mesma forma, não há combate à pobreza sem enfrentar a crise climática. Além do mais, se o planeta vai esquentando mais, todo mundo é impactado. Há um documen­to do Banco Mundial que afirma que, por conta da crise climática, corremos o risco de perder todos os ganhos contra a pobreza nos últimos 20 anos. (...) Com 1,5ºC, 2ºC, o número de refugiados previstos para a segunda metade do século é da ordem de 350 milhões de indivíduos. Imagina! Bangladesh, um país pobre, 30% da população vai ter que se mudar. O município de São Gonçalo, na Baía de Guanabara, um pedaço grande dele será inundado pela elevação do nível dos mares, e assim por diante, podemos ficar aqui horas falando. Só conseguiremos eliminar a pobreza do planeta, que é uma das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, da ONU, até 2030, se enfrentarmos o desafio da crise climática e pararmos o aquecimento do planeta.                                 

 

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*1 The Climate Reality Project é uma organização global fundada em 2006 pelo ex-vice-presidente dos EUA e Nobel da Paz Al Gore. Tem como missão catalisar uma solução global para a crise climática, tornando a ação urgente uma necessidade em todos os setores da sociedade. Por isso, recruta, treina e mobiliza pessoas para se tornarem ativistas poderosos, providenciando as habilidades, campanhas e recursos para demandar ações climáticas ambiciosas e políticas de alto nível que aceleram uma justa transição para uma economia de baixo carbono. No Brasil, a entidade é representada pelo Centro Brasil no Clima desde 2016 e conta com mais de 1.200 líderes da Realidade Climática.

*2 Rio-92 foi a primeira Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, promovida no Rio de Janeiro/RJ, em 1992. O encontro teve desdobramentos relevantes para o cuidado do meio ambiente em esfera mundial, abrindo espaço para debates e iniciativas políticas, sociais e científicas que visam ao modelo de desenvolvimento ambientalmente sustentável.