A última jornada?!

Conceituado médico norte-americano, após décadas de estudos, fala sobre o que as experiências de quase-morte podem nos ensinar

Leilla Marco e Josué Bertolin

09/03/2022 às 12h33 - quarta-feira | Atualizado em 10/03/2022 às 10h32

Seria o falecimento do corpo físico o derradeiro suspiro de nossa existência? O que as experiências de quase-morte (EQMs) vivenciadas por milhares de pessoas no mundo, de diferentes culturas, podem revelar sobre a vida e a respeito da relação mente-cérebro? Foram esses e muitos outros questionamentos que direcionaram a carreira do célebre médico norte-americano Bruce Greyson, professor emérito de Psiquiatria e Ciências Neurocomportamentais da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos. 

Professor e psiquiatra Bruce Greyson.

Entre os milhares de casos investigados pelo pesquisador ao longo de 50 anos de estudos, ele contou à Super Rede Boa Vontade de Comunicação (TV, rádio, internet e publicações) o de um rapaz, com cerca de 20 anos, que foi internado em um hospital com pneumonia grave e teve repetidas paradas respiratórias. “Havia uma enfermeira que o atendia diariamente. E, um dia, ela disse que iria tirar o fim de semana de folga, por ser aniversário dela, e que outras profissionais a substituiriam. Então, ele se despediu da mulher, e ela deixou o local. Enquanto ela estava fora, o jovem teve outra parada respiratória e precisou ser reanimado. Durante a parada, ele teve uma experiência de quase-morte, em que se viu em uma bela cena pastoral de uma floresta, e, para sua surpresa, essa enfermeira, Anita, caminhava em sua direção. E ele perguntou: ‘Anita, o que está fazendo aqui?’ Ela respondeu: ‘Jack, você precisa voltar para o seu corpo, e quero que encontre meus pais e diga a eles que sinto muito ter destruído o carro vermelho’. E foi embora. Quando acordou, de volta em seu leito, ele tinha uma memória vívida da experiência. Acontece que essa enfermeira que havia tirado o fim de semana de folga foi surpreendida pelos pais com um carro esportivo vermelho de presente. Ela ficou animada, entrou no automóvel, saiu para um passeio, perdeu o controle, bateu em um poste e morreu, poucas horas antes de ele ter a EQM. Ora, não tinha como esse paciente saber que a enfermeira estava morta ou esperar que ela falecesse. E de jeito nenhum poderia saber como a profissional morreu. Ainda assim ele sabia. É difícil explicar isso como apenas expectativa.”

Na entrevista, a seguir, além de trazer outros acontecimentos desse gênero, o dr. Bruce, que é cofundador da Associação Internacional para Estudos de Quase-Morte (IANDS, sigla em inglês), destaca como o avanço da pesquisa científica tem revelado sobre o processo de morrer e que é possível esse ser o limiar de uma forma de consciência para outra, não o fim, mas uma fase de transição. Segundo o estudioso, esse conhecimento indica haver algo para além da morte, causando uma importante transformação no mundo.

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BOA VONTADE — Poderia nos contar sobre seu interesse no tema “experiências de quase-morte”?

Dr. Greyson — Como escrevi em meu livro After, cresci em uma família científica sem qualquer tradição espiritual ou religiosa. Costumávamos pensar que o mundo material, físico, era tudo o que existia e que, quando se morre, é o fim. Fiz faculdade de Medicina com essa mentalidade materialista, mas, na minha formação psiquiátrica, deparei-me com uma paciente que teve overdose no pronto-socorro, e ela estava inconsciente. Mas sua amiga estava lá, conversei com ela sobre o ocorrido. Pouco antes disso, eu estava jantando no refeitório quando meu pager tocou, dando-me um susto e fazendo com que derramasse molho de tomate na minha gravata. Vesti um jaleco branco, cobrindo a mancha, para que ninguém a visse. Enquanto falava com a amiga dela — estava quente naquela noite de verão —, desabotoei o jaleco para não suar tanto; não tínhamos ar-condicionado na década de 1970. E acabei expondo minha gravata com a mancha por cerca de 10 minutos. Terminei de falar com ela, despedi-me, abotoei meu jaleco, voltei para ver a paciente, mas ainda estava inconsciente. Providenciei tudo para que fosse internada na UTI e voltei para vê-la na manhã seguinte, quando acordou. Ao chegar, comecei a me apresentar, ela disse: “Sei quem você é. Eu me lembro de você da noite passada”. Aquilo me deixou um pouco confuso, e eu disse: “Estou surpreso. Achei que estivesse inconsciente quando a vi ontem”. Ela olhou para mim e respondeu: “Não no meu quarto. Eu o vi conversando com minha amiga no fim do corredor”. O único jeito que aquilo poderia ter acontecido seria se ela tivesse deixado seu corpo e me seguido pelo corredor, e, até onde eu sabia, ela era o seu corpo, como pôde deixá-lo? Percebendo que estava confuso, contou-me sobre a conversa que tive com sua amiga, todas as minhas perguntas, as respostas dela, e finalmente falou sobre a mancha na minha gravata. Eu pensei: “Isso deve ser alguma pegadinha”. Tentei tirar isso da minha mente; era muito para digerir. Nos anos seguintes, conheci mais alguns pacientes que contaram histórias semelhantes sobre deixar seus corpos quando estavam perto da morte. Cerca de cinco anos depois, meu colega da Universidade da Virgínia Raymond Moody escreveu o livro A vida depois da vida, no qual trouxe o termo “experiências de quase-morte” e as descreveu. Percebi, então, que as histórias que me contavam não eram apenas divagações de pacientes psiquiátricos, mas um fenômeno mundial. Eu não planejava dedicar minha vida a isso. Eu pensei: “Deve haver uma explicação materialista simples. Vou passar um ou dois anos tentando compreender, obter a resposta e pronto”. Porém, quanto mais aprendia sobre o assunto, mais difícil ficava de explicar. Várias pessoas escreveram para Raymond Moody, médicos e pesquisadores que queriam estudar essas experiências. Alguns de nós nos reunimos e formamos a Associação Internacional de Estudos de Quase-Morte (IANDS) para promover pesquisas nesse campo. Comecei a coletar casos e aqui estou, 50 anos depois, ainda buscando entender essas coisas.

BV — Como estão os estudos na IANDS?

Dr. Greyson — Fizemos pesquisas sobre a fenomenologia básica das experiências de quase-morte, para entender as características que são comuns às pessoas que as experienciam, independentemente de suas vivências, crenças religiosas ou culturais. Sabemos que esses fenômenos não estão relacionados à cultura; mas a forma como o indivíduo a interpreta, sim, está ligada a isso. Pessoas em todo o mundo podem ver um Ser de Luz afetuoso e amoroso. Contudo, se é de um país cristão, pode chamar isso de Deus ou Cristo. Se é de um país hindu ou budista, não usaria essa palavra, mas descreveria algo semelhante. Concluímos que existe um fenômeno central que é o mesmo. Analisamos os efeitos posteriores, e havia um padrão consistente neles, a maneira como isso muda a vida das pessoas e cria um maior senso de Espiritualidade; e, assim, elas costumam falar de uma conexão com o outro, com a Natureza, com o Universo, com o Divino, tornando-se mais compassivas, porque percebem que somos todos iguais. Sentem que o que fazem ao outro estão fazendo a si próprias também. Elas igualmente parecem se tornar menos interessadas ​​nas coisas deste mundo, posses materiais, poder, prestígio, fama, competição... E tais mudanças não desaparecem. Já conversei com pessoas décadas depois de suas experiências de quase-morte, e os efeitos posteriores são tão fortes quanto no dia seguinte à sua experiência. (...) Também buscamos observar quais fenômenos estão associados a uma EQM, o que pode causá-la: falta de oxigênio no cérebro, drogas, químicos produzidos no cérebro etc., e que elementos não estavam associados, bem como a questão da “expectativa” e a conexão com doenças mentais, e não existe nenhuma dessas.

BV — Enquanto investigava esses fenômenos nos anos 1970, o senhor se deparou com padrões. O que encontrou? E como isso contribuiu para a criação da escala de EQM?

Dr. Greyson — Quando começamos, estávamos limitados às pessoas que vinham até nós dizendo: “Soube que estão interessados nesse fenômeno e eu tive uma experiência”. E não sabíamos se aquilo era tendencioso até começarmos a fazer perguntas a todos que iam para o hospital perto da morte com, por exemplo, uma parada cardíaca, e começamos a ouvir outros tipos de histórias, de experiências que foram desagradáveis, que tinham o mesmo fenômeno de sair do corpo, passar por um túnel, ir a outra dimensão, mas que foi aterrorizante; não foi feliz como é a maioria das EQMs. Não sabemos quantas foram assim. Parece ser uma pequena minoria. Muitos acreditam estar entre 1% e 5%, mas é tão difícil para as pessoas falarem sobre elas que podem haver muitas outras. Mas ficou claro que não entenderíamos esses fenômenos analisando apenas alguns casos. Então, começamos a compilar bancos de dados de centenas, milhares de casos vindos de todo o mundo. E isso nos permitiu fazer uma análise estatística e identificar padrões que se repetem de forma consistente em todas as culturas e ao longo do tempo. (...) Outro problema foi que cada pesquisador tinha suas próprias ideias sobre o que poderia ser uma EQM. Alguns estavam interessados ​​em mudanças nos processos de pensamento durante o fenômeno. Então, analisavam os pensamentos se acelerando, tempo de inércia, revisão de vida, mas não perguntavam sobre deixar o corpo. Outros se interessavam pelos aspectos religiosos, aí perguntavam sobre ver Deus, ir para uma vida após a morte, mas não questionavam a respeito dos pensamentos acelerando. Havia também aspectos paranormais, como deixar o corpo, ter visões do futuro e ver entes queridos falecidos, mas não perguntavam sobre ir para o Céu ou ver Deus. Por isso, desenvolvemos uma escala, que chamo de “escala de EQM”, que viabiliza a todos as mesmas perguntas básicas. Assim, garantimos que todos investigassem o mesmo fenômeno básico. E hoje essa escala já foi traduzida para cerca de 20 idiomas e usada em milhares de estudos em todo o planeta.

BV — Além da história que nos contou, que foi seu ponto de partida, há outros fatos marcantes que gostaria de compartilhar?

Dr. Greyson — Décadas depois dessa primeira história, conheci um homem com seus 50 e poucos anos que teve uma forte dor no peito enquanto dirigia um caminhão. Ele chegou ao pronto-socorro, foi avaliado e descobriu que quatro vasos sanguíneos que vão para o coração estavam obstruídos. Então, levaram-no às pressas e fizeram uma cirurgia quádrupla de ponte de safena. Durante a operação, ele deixou seu corpo e ficou pairando acima dele, olhando para baixo. E viu seu cirurgião batendo os cotovelos como se estivesse tentando voar. Quando ele me disse isso, achei um absurdo. Eu já era médico há cerca de 30 anos e nunca tinha ouvido nada parecido. Parecia que ele estava tendo alucinações. E ele disse: “Não, não, é verdade, é verdade!” Alguns dias após, com a permissão dele, conversei com o cirurgião, que disse: “Sim, é verdade. Eu fiz isso mesmo”. O médico desenvolveu um hábito único, ele deixa seus assistentes iniciarem a operação enquanto veste o jaleco e as luvas esterilizados e entra na sala de cirurgia. Para garantir que não toque em nada que não esteja desinfetado, coloca as palmas das mãos contra o peito e vai apontando as coisas para seus assistentes, usando os cotovelos, para que ele não toque em nada com os dedos; e demonstrou exatamente como o paciente havia visto. Não sei como ele poderia saber disso. Você não vê médicos na televisão fazendo esse tipo de coisa.

BV — Ao ler sobre seu trabalho, percebe-se que o senhor se interessa pela relação mente-cérebro. Quais são suas reflexões sobre esse assunto?

Dr. Greyson — Eu aprendi que a mente é o que o cérebro faz, que todos os pensamentos e percepções são criações do cérebro. Então, comecei a estudar as experiências de quase-morte com essa mentalidade. E quanto mais eu aprendia sobre elas, mais ridícula essa ideia parecia. Quando nosso cérebro não está funcionando, temos a consciência mais vívida de todas. E a única maneira de entender isso é se pensarmos que a mente é de alguma forma independente do cérebro. Isso vai contra o que aprendemos, mas parece estar de acordo com os dados. E essa não é uma ideia nova. Dois mil anos atrás, Hipócrates escreveu que o cérebro é o mensageiro da mente. Alguns usam a analogia de um sintonizador de rádio ou TV. Existem muitas estações de TV por aí. Se você tentasse assistir a todas ao mesmo tempo, não conseguiria entendê-las. E o aparelho de televisão permite que filtre as estações, exceto uma. É essa que ele permite entrar. Daí você consegue assistir e entender. E dizem que com o cérebro é assim. Temos essa consciência maravilhosa na mente, mas ela nos sobrecarregaria se tentássemos entendê-la agora. O cérebro, então, filtra todas as coisas irrelevantes sobre Deus e entes queridos falecidos e deixa entrar somente o que é importante. O que é relevante? Bem, o cérebro evoluiu como um órgão biológico, como todos os outros órgãos, para nos ajudar a sobreviver no mundo físico, encontrar comida, abrigo, um(a) companheiro(a) e assim por diante. Então, o cérebro se livra de todas as outras coisas e deixa entrar apenas aquilo que é relevante para a sobrevivência física. E há provas disso, não somente em experiências de quase-morte. Por exemplo, fizemos neuroimagens de pessoas nos Estados Unidos e no Reino Unido que têm mostrado que experiências místicas mais elaboradas com drogas psicodélicas são acompanhadas por uma diminuição na atividade elétrica no cérebro. Isso desliga o cérebro e permite que essa consciência entre. Existe também um fenômeno chamado “lucidez terminal”, em que os que sofrem de demência em estágio final, como o Alzheimer, e não podiam reconhecer a família ou se comunicar por meses ou anos, de repente tornam-se lúcidos e reconhecem as pessoas, têm conversas coerentes e falecem logo depois. Não há explicação médica para isso. Você não regenera uma mente com demência assim. Pode ser que o cérebro esteja tão deteriorado que ele para de filtrar essa consciência.

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BV — Estudando a morte e o que pode vir após ela, o que nos falaria sobre o que é a vida e o viver?

Dr. Greyson — Estudar esse fenômeno me transformou. (...) A maioria das pessoas que teve experiência de quase-morte me diz que a morte não é o fim e que o que vem depois é algo que não devemos temer. Eu não sei o que vai acontecer depois que eu morrer, mas acredito que algo acontecerá após isso; existe alguma vida após a morte. Não tenho ideia do que seja e estou disposto a me surpreender, mas acho que há algo por vir. Isso significa que não precisamos ter tanto medo de perder nossas existências quanto tínhamos antes de sabermos sobre as EQMs, o que nos torna mais dispostos a viver no presente, a correr riscos, a viver a vida ao máximo. E, sabendo o que as experiências de quase-morte dizem sobre a compaixão e essa conexão com outras pessoas, nos tornamos muito mais compassivos e dispostos a ajudá-las, até mesmo nos sacrificando, se necessário. E isso nos dá uma vida mais significativa e gratificante.