Estados alterados de consciência

A pesquisa do prof. dr. Etzel Cardeña sobre aspectos transformadores da vida da humanidade

Leila Marco e Josué Bertolin

06/07/2021 às 16h23 - terça-feira | Atualizado em 06/07/2021 às 16h37

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O conteúdo a seguir foi originalmente publicado na edição n° 261 da revista BOA VONTADE. Recomendamos a leitura da publicação, disponível gratuitamente em www.revistaboavontade.com.br.

Arquivo pessoal

Professor doutor Etzel Cardeña, diretor do Centro de Pesquisa sobre Consciência e Psicologia Anômala, da Universidade de Lund, na Suécia.

Os estados alterados de consciência (EACs) são aqueles que diferem da condição normal de vigília, ou seja, eles se caracterizam por serem uma alteração qualitativa no padrão global de funcionamento mental. Descritos por civilizações de todas as eras, os EACs são elementos importantes na história das sociedades não somente para as religiões, mas para todos os tipos de atividades humanas.

Muito frequentes na população em geral, essas experiências anômalas, místicas, espirituais e paranormais vêm sendo cada vez mais pesquisadas pela prática psiquiátrica. Daí a relevância do trabalho desenvolvido, de forma rigorosa e ampla, pelo professor doutor Etzel Cardeña, diretor do Centro de Pesquisa sobre Consciên­cia e Psicologia Anômala, da Universidade de Lund, na Suécia.

Esse psicólogo e parapsicólogo mexicano, que ficou internacionalmente conhecido pelo seu estudo psicológico sobre a natureza da consciência, mostra nesta entrevista exclusiva à Super Rede Boa Vontade de Comunicação (rádio, TV, internet e publicações) exemplos de estados alterados de consciência e como eles estão presentes na Arte, na Cultura e em iniciativas de pessoas visionárias de todas as épocas.

BOA VONTADE — O interesse pela pesquisa dos estados alterados de consciência veio de que maneira?
Dr. Etzel Cardeña
— Acredito que surgiu, sobretudo, quando comecei no teatro. No México, quando era jovem, participava de um grupo de teatro experimental. Havia muitas atividades físicas rigorosas, as quais tínhamos que realizar mantendo a consciência limpa, até chegar à beira da exaustão, e ainda ultrapassar o limite. Foi nessa situação que percebi que podia fazer coisas que não imaginava conseguir e que minha relação com o meu corpo e o meu entorno estava mudando para melhor. (...) Quando estava com o grupo de teatro, recordo-me de que fomos a uma montanha nos arredores da Cidade do México, o Ajusco; fazia bastante frio, é um local consideravelmente alto. A Cidade do México está a 2.000 metros acima do nível do mar, e o Ajusco é uma montanha ainda mais elevada.  Sentia que estava bem-conectado com meu corpo e com meu entorno, que não precisava de calçado, nem de meias, nem de roupa, que conseguiria facilmente caminhar até o topo; tinha ciência de que meu corpo sabia o que precisava fazer. Não pensava que era um especialista em alpinismo — nem de longe. Lembro-me de que meus colegas do grupo de tea­tro chegaram a dizer que eu estava louco [risos], que ia adoecer se continuasse em frente. A única coisa que eu lhes disse foi: Ouçam! Calem-se, por favor! Não me desconcentrem e deixem-me continuar o que estou fazendo, vai ficar tudo bem! Já tive experiências desse tipo, como a de não sentir dor quando deveria senti-la. Nessa época, estudava Psicologia, e, no meu curso, não existia nada que tratasse dos estados alterados de consciência. Aí pensei: Esse assunto é mais interessante do que falar sobre neurose.

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Edição nº 261 da revista BOA VONTADE.

BV — E a Parapsicologia, como surgiu em sua vida?
Dr. Etzel Cardeña
— Meu pai era psicoanalista e tinha bastante interesse pela Parapsicologia. Ele costumava fazer experiências, não eram formais, e fazia muitas leituras sobre o tema; por isso, acreditava que tinha técnicas que podiam facilitar às pessoas o desenvolvimento de suas pesquisas. Desde criança, ouvia meus pais conversarem [a respeito do assunto], encarava isso com naturalidade, não que eu fosse, digamos, um sensitivo ou médium, mas lembro-me de uma amiga da família que era incrível. Por exemplo, diziam um nome de uma pessoa que lhe era desconhecida, e ela começava a descrever doenças: “Hum, tem uma entorse do lado direito, bem aqui…” ou “Parece que lhe falta um dente, bem aqui, no lado esquerdo”. Ela não acertava 100%, mas quase tudo. Então, conforme ia crescendo, passei a acreditar na existência disso. E, claro, mais tarde, também vivenciei experiências assim.

BV — O que são estados alterados de consciência? É algo universal?
Dr. Etzel Cardeña
— Todos nós manifestamos os estados alterados [de consciência]. Vocês, daqui a algumas horas, vão dormir e passar pelos estágios distintos de sono. Primeiro, entrarão no estado hipnagógico, em que estão entre acordados e adormecidos; depois, entrarão no sono, sem ocorrer os sonhos; em seguida, vão para o estado do Rapid Eye Movement (Movimento Rápido dos Olhos), o chamado REM. Todos passamos por diferentes estados, mesmo sem fazer uso de fármacos. Eu diria que, ao longo do dia e da vida, passamos por variados estados, e o que tenho procurado fazer é não falar tanto de estado, porque “estado” soa como algo imutável. Estou no estado de hipnose, ou não; melhor usar o termo em inglês: altering consciousness, que significa “a consciência está se alterando” ou “a consciência pode ser alterada”.

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BV — Poderia explicar melhor?
Dr. Etzel Cardeña
Altering consciousness pode ser um processo pelo qual a consciência está se alterando. Por exemplo, no meu estudo experimental referente à hipnose, trabalhando com pessoas mais suscetíveis a ela, diria que 10% delas são mais hipnotizáveis. O que eu pude determinar — e isso se repete em estudos de terceiros — foi que existem fases nas quais, primeiro, a pessoa começa a descrever sensações estranhas no corpo, podendo ter formigamentos ou sentir-se mais leve, ou mais relaxada, alguma coisa diferente, mas não tão anormal assim; é uma sensação distinta daquela que estava sentindo anteriormente. Depois dessa fase, todos os indivíduos experimentavam, ao se desconectarem do corpo, que estavam flutuando ou voando, ou que estavam caindo em um túnel; tipos e temas de experiências próprios do Xamanismo, mas com estudantes que não tinham nem ideia do que isso era. Não recebiam nenhuma sugestão para vivenciarem isso. Outras classes tiveram algo semelhante a um sonho lúcido e diziam: “Eu estava nessa paisagem aqui, junto ao mar, era tão real, até mais real do que a própria realidade quando estou fora da hipnose”. Também podiam ter experiências místicas.

BV — O que ocorre com o cérebro durante os estados alterados de consciência?
Dr. Etzel Cardeña
— Realizo pesquisa utilizando o eletroencefalograma (EEG) e agora estou usando o RMF [ressonância magnética funcional]. (...) O que pude observar foi que, em certas classes de experiências, o cérebro, geralmente, mostra uma menor sincronização, o que significa dizer que diferentes partes dele não estão realizando coisas tão conjuntamente, como se espera em um estado de consciência típico. E, na classe de experiências observadas — cuja denominação é complexidade Ômega, esse é o termo técnico —, as pessoas falavam sobre coisas mais transcendentais, relatavam experiências que lhes proporcionavam emoções positivas muito fortes, bem como imagens que lhes eram muito reais, as quais tinham certeza de estar vivenciando. (...) Com a tecnologia atual, ver o que acontece no cérebro é como dizer: “Bom, vamos ver o que acontece na cidade de Nova York, ou na cidade de São Paulo” — quando não está em lockdown e as pessoas estão todas na rua. De modo um pouco simplório, é como se estivesse vendo por um telescópio há muitos quilômetros de distância e querer saber o que está acontecendo. Não dá para dizer muita coisa, é possível fazer aproximações. Com o tipo de tecnologia que temos hoje, quando o assunto é a neurociência e o cérebro, muitos acreditam que, por exemplo, a atividade cerebral de todos funciona igual, e não é assim. Ela muda muito quando a pessoa é destra ou canhota, ou se é ambidestra, se são homens ou mulheres... Existem certas diferenças, conforme as experiências de cada um.

BV — Os estados alterados de consciência influenciam as funções humanas?
Dr. Etzel Cardeña
— Sim! Se me permitem fazer um pequeno anúncio, tenho dois livros em que há o termo altering consciousness (a consciên­cia está se alterando). Eles foram publicados há alguns anos, e neles eu e meu editor — o antropólogo Michael Winkelman, que mora no Brasil, especialista em alucinógenos — recorremos a profissionais de diferentes áreas para que respondessem como as alterações de consciência influenciam a Sociologia, a Antropologia, os movimentos sociais, a Filosofia, as Ciências da Saúde, a Literatura, a Medicina etc. E esses especialistas responderam que os EACs não são a única coisa importante, mas que, de certa forma, causaram forte influência. E alguém pode dizer: “Bem, claro, na Antropologia temos coisas muito óbvias, ou com relação à Religião pode ser relevante, porque algumas pessoas que fundaram religiões ou que são consideradas importantes tiveram essa iniciativa por terem tido alterações de consciência e, por isso, desejam transmiti-las aos outros”. Mas não é apenas isso, porque os movimentos sociais podem atrelar-se ao que os indivíduos vivenciam quando se sentem parte de algo maior, seja para o Bem ou para o mal. (...) As alterações de consciência tiveram e continuam tendo importância na História.

+ Confira a edição nº 261 da revista BOA VONTADE

BV — Na Arte essa influência também é relevante?
Dr. Etzel Cardeña
— Há pouco tempo, publiquei um artigo e, nele, mencionei como as altera­ções de consciência e os fenômenos parapsicológicos têm se mostrado relevantes para a arte não representativa e a arte surgida depois dos movimentos românticos, mais notadamente dos dadaístas, dos surrealistas e dos conceptualistas. Podemos ver claramente que a classe de experiências vivenciadas pelos artistas influenciou o que eles estavam produzindo, alguns deles, inclusive, trataram de utilizá-las, como o pintor [Wassily] Kandinsky [1866-1944]. Ele acreditava que o éter interligava tudo e fazia parte do seu trabalho. Se pensarmos na Filosofia, [podemos citar] Descartes [1596-1650]. Por exemplo, alguém poderia afirmar: é uma pessoa brilhante e bastante racional e cuja filosofia, em parte, se fundamenta nos seus questionamentos, nas suas reflexões sobre a vida dos sonhos, de como alguém poderia distinguir o que é verdade quando está ou não no sonho. A isso não se tem dado a devida importância. Enfim, [as alterações de consciência] têm sido fundamentais, ao longo da História, em quase todas as áreas.  

BV — Essas alterações de consciência expandem as funções psíquicas, mediúnicas?
Dr. Etzel Cardeña
— Sim, mas precisarei explicar. Em meus trabalhos de pesquisa sobre Parapsicologia, nos quais busco verificar se as pessoas obtêm informações que sejam precisas e claras não por meio dos sentidos ou do uso da razão, mas em algum lugar além do que se espera, ao acaso — que são basicamente denominados de aspectos e fenômenos psíquicos —, observamos, há décadas, que existe uma nítida diferença entre os estudos que trabalham com quem está em seu estado habitual de consciência e os que possuem algum tipo de alteração, pelo uso de hipnose ou de meditação. Algumas pesquisas utilizam drogas psicodélicas e uma técnica chamada Ganzfeld, que é basicamente uma espécie de privação sensorial à qual as pessoas são submetidas. Nesse sentido, quando elas estão em condição mais propícia para alterar a consciência, desempenham estatisticamente melhor do que quando em condição de estado normal de consciência.

+ Confira a edição nº 261 da revista BOA VONTADE

BV — Essa percepção é antiga?
Dr. Etzel Cardeña
— Tenho uma amiga, especialista nos clássicos, que escreveu um livro muito bom sobre as alterações de consciência na Grécia clássica. Pode-se observar que, para Platão [428-348 a.C], em sua famosa metáfora do “Mito da Caverna”* [, na qual os habitantes que ali se encontram não conhecem a realidade externa e estão acostumados a ver apenas sombras no fundo da caverna], nós, em nossa consciência habitual, vemos sombras, e não o que é de fato. Isso quer dizer que precisamos estar em outra forma de consciência se quisermos ver outros aspectos que geralmente não conseguimos perceber. Até mesmo seu aluno Aristóteles [384-322] disse algo parecido há 2.000 anos, mais ou menos. Ele já falava do efeito Ganzfeld e também dizia que, quando os sentidos ficam silenciados, é mais provável que as pessoas obtenham informações sobre outros aspectos que estão num lugar distante ou mesmo que ocorrerão no futuro. E muitos seres humanos perceberam isso. O que temos agora não são apenas opiniões ou registros de indivíduos brilhantes, e eles podiam não ter razão, mas, quando as pesquisas se acumulam estatisticamente no que é chamado de meta-análise, fica evidente que, ao procurar alterar a consciência, os resultados, em geral, são melhores.

BV — Seria essa uma maneira de acessar uma realidade além da nossa?
Dr. Etzel Cardeña
— Podemos falar ao menos de duas implicações básicas, existem mais: uma é que simplesmente o que percebemos só abarca parte do que existe. Isso já é importantíssimo, a forma como percebemos é sim relevante e tem muito a oferecer, mas não é a única que existe. A segunda é que, tanto nas alterações de consciência místicas quanto nas implicações dos eventos parapsicológicos, chama claramente a atenção o fato de que estamos mais compenetrados e, de alguma maneira, bem mais unidos em relação ao que experimentamos habitualmente. Isso não é qualquer coisa, é algo notável. É como dizer: bom, eu vivenciei isso e tem que ser verdade e congruente com as implicações dos modelos quânticos. (…) Meu momento presente não é falso, contudo existe algo a mais. Lá, no Além, existe mais; porém, esse outro nível tem de ser “o nível”? Nós somos criaturinhas com capacidades limitadas, resultantes de nossa história, da evolução de nossas vicissitudes pessoais. Então, se começarmos — como seres humanos — sendo assim, pequenos, conforme formos expandindo [nossa percepção], experimentamos ser parte de algo muito maior. E o que há para ser abarcado é universal. Achar que sabemos tudo não passa de soberba insustentável.