Biologia da Fé

Cientistas estudam como as práticas espirituais, entre elas a meditação e a prece, são significativas para o cérebro e para a saúde do corpo

Leilla Marco e Josué Bertolin

14/04/2022 às 08h45 - quinta-feira | Atualizado em 14/04/2022 às 10h33

O dr. Andrew Newberg, professor da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, desde muito jovem procurou entender a ligação entre o “eu” espiritual e o cérebro (o “eu” biológico). Há vinte e cinco anos, passou a estudar com maior propriedade o tema quando trabalhou com o psiquiatra e antropólogo Eugene d’Aquili (1940-1998). Foi por essa época, em 1993, que passou a se dedicar à neuroteologia* e a desenvolver modelos de pesquisa e teorias sobre o que ocorre com os circuitos neurais durante a meditação e a prece e sobre o quanto essas práticas podem mudar nossa mente.

Divulgação

Andrew Newberg

Grande parte do estudo desse médico norte-americano emprega a tomografia computadorizada por emissão de fóton único. “Nós utilizamos diversas abordagens para a obtenção de imagens do cérebro enquanto ele funciona. Entre as mais comuns está a ressonância magnética funcional, que usa um grande ímã. Você põe uma pessoa nesse campo magnético, e a máquina consegue imagens do cérebro enquanto [a pessoa] faz coisas variadas, como, por exemplo, quando está em uma tarefa que envolve criatividade ou está meditando ou rezando”, contou em entrevista exclusiva à Super Rede Boa Vontade de Comunicação (rádio, TV, internet e revista).

Em trecho de um de seus livros, o médico também escreve: “(...) Se você considerar Deus por tempo suficiente, algo surpreendente acontece no cérebro. O funcionamento neurológico começa a se modificar. Circuitos diversos são ativados, enquanto outros são desativados. Formam-se novos dendritos, são feitas novas conexões sinápticas e o cérebro se torna mais sensível aos domínios sutis da experiência. (...) É por isso que eu digo, com a máxima confiança, que Deus pode modificar seu cérebro. E não importa se você é cristão ou judeu, muçulmano ou hinduísta, agnóstico ou ateu”.

O trabalho desse cientista, além de propor a hipótese segundo a qual o ser humano seria dotado de áreas cerebrais especialmente destinadas à comunicação com o Divino, mostra de que forma as experiências religiosas podem promover, em quem as vivencia, saúde, bem-estar e felicidade. Confira, a seguir, os melhores trechos desse bate-papo e conheça um pouco mais a respeito dessa poderosa energia.

BOA VONTADE — Por que unir Ciência e Religião em sua pesquisa?
Andrew Newberg —
Há uma série de razões para fazer isso. Como médico, estive com pacientes que sentiam que a oração e suas crenças religiosas e espirituais eram importantes para eles. Tentar entender qual é a relação, como as pessoas recorrem à Religião e à Espiritualidade num determinado momento para ajudá-las a suportar algo, e colaborar para que elas descubram a melhor maneira de usar a meditação e a oração para aprimorar sua saúde física e mental, em termos gerais, são exemplos do que a neuroteologia pode realizar. Outro ponto é nos ensinar sobre as funções cerebrais, porque essas experiências espirituais são alguns dos processos mais complexos que o cérebro executa. (...) Em um nível mais esotérico, é possível compreender um pouco mais a respeito da relação entre o cérebro e a mente, como somos capazes de conceber nossa consciência, nossas emoções, nossos pensamentos e nossos sentimentos e de que modo eles se relacionam com as partes biológicas do corpo e do cérebro.

BV — Ao estudar as atividades de meditar e orar, o que encontrou?
Newberg —
Os resultados são fascinantes. Diversas áreas neurais estão envolvidas nelas. Por esse motivo [tais atividades] são muito ricas, variadas. Quando falamos em todos esses distintos elementos, relacionamo-los com múltiplas regiões cerebrais, ou seja, quando nos inteiramos de uma emoção, como o amor, a alegria ou a reverência [pelo sagrado], que se pode sentir, isso está relacionado à área do cérebro chamada sistema límbico. Ao refletirmos sobre o conceito de Deus, o que Ele significa, de que forma você O sente, qual é Sua aparência, há partes do pensamento abstrato do cérebro que nos ajudam em diferentes ideias, e, provavelmente, as usamos ao pensar em Deus. (...)
Outra região cerebral na qual tenho particular interesse é o lobo parietal, que fica na parte de trás desse órgão. É a que pega as informações de nossos sentidos e nos auxilia a entender onde estamos no mundo e a desenvolver o senso de individualidade. Nos indivíduos que têm experiências religiosas muito fortes e exercitam práticas intensas, entre as quais a meditação, a atividade na região diminui, até cessar. Quando ocorre isso, tudo que está separado passa a ser indistinto, e é descrita pelas pessoas uma sensação de unidade, de tornar-se um com Deus ou com o Universo.

BV — Qual a diferença entre essas experiências?
Newberg —
No estudo que fizemos com um grupo de freiras franciscanas quando realizavam a oração centrante, em que você se fixa intensamente em um objeto visual, observamos um aumento da atividade nos lobos frontais do cérebro. Já em práticas nas quais os indivíduos não se concentram intencionalmente e se entregam à experiência, vemos uma queda da atividade no lobo frontal. Em meu livro intitulado How Enlightenment Changes Your Brain [Como a Iluminação Pode Mudar sua Mente], falamos de como uma prática, a exemplo da meditação, na qual a concentração é muito intensa, primeiramente ativa seu lobo frontal e, depois, quando há o momento de êxtase, de iluminação,a atividade cai de forma acentuada. Esse é o aspecto essencial das experiências muito intensas, nas quais há a sensação de entrega, de que aquilo está sucedendo com você, em vez de você fazer acontecer. Nós vemos isso em quem fala em línguas e afirma: “Não estou fazendo estas vocalizações. Deus está falando por intermédio de mim”. Fato semelhante ocorreu com um grupo de médiuns brasileiros que veio a nosso laboratório para ser estudado. Eles também se descreviam como receptores.

BV — O que isso significa para o corpo?
Newberg —
Ao passarmos por essas emoções, forte amor ou júbilo em nossa prática religiosa, nós pensamos e sentimos isso no cérebro, mas também vivenciamos essa experiência no organismo todo. A pessoa pode sentir o coração acelerar, a pressão arterial aumentar ou diminuir, dependendo do que está sentindo, e existe aquela incrível sensação de calma e felicidade supremas. Isso é parte da base quando se fala de rituais religiosos e espirituais. São eles que nos ajudam a trazer as ideias cognitivas e emocionais para nosso ser, a sentirmos isso de maneira visceral no corpo todo. Assim, refletimos sobre isso no contexto do que acontece no cérebro; como isso se relaciona aos hormônios, aos nervos, ao sistema nervoso autônomo, que regula os batimentos cardíacos e a pressão arterial; e de que modo todas essas coisas mudam em virtude da prática. Isso tem profundas implicações no entendimento da relação entre as práticas religiosas e espirituais e a saúde e o bem-estar. Se realizamos uma prática de meditação simples, que reduz o estresse e a ansiedade, ela também ajuda a diminuir a frequência cardíaca e a pressão arterial e a melhorar o funcionamento do sistema imunológico.

BV — O que muda no cérebro com essas práticas?
Newberg —
É emocionante observar que, além das mudanças que ocorrem no momento da prática, parece haver modificações no cérebro ao longo do tempo. Um estudo com a meditação Kirtan Kriya, algo muito simples, que leva doze minutos por dia, demonstrou que, após oito semanas de realização dessa prática, os lobos frontais das pessoas [que a executavam] estavam mais ativos, mesmo em repouso, e não apenas quando [elas] meditavam. Outras pesquisas evidenciam que o cérebro de quem medita há muito tempo é, literalmente, maior e mais espesso do que o dos demais. Pode-se fazeruma analogia com praticar exercícios: quando você levanta pesos, seu músculo fica maior e mais forte, e, de certa forma, realizar uma prática de oração ou meditação é como um levantamento de pesos para seu cérebro. Ele literalmente fica maior e mais forte, em termos funcionais. Outra parte cerebral que parece mudar com o passar do tempo é o chamado tálamo, uma estrutura central do órgão que liga diferentes áreas dele e partes superiores do cérebro ao corpo. Se uma meditação breve transforma, imagine o que muda no cérebro de monges, freiras, pessoas religiosas ou espiritualistas, que realizam essas práticas durante horas por dia e durante toda uma vida!

BV — Como os profissionais da ciência veem essa pesquisa?
Newberg —
Ela conquistou essas áreas, esse campo de trabalho; sem dúvida, atraiu muita atenção. É claro que há os críticos que acham que Religião e Ciência não devem ser misturadas, e eu entendo e respeito isso. A religiosidade é, obviamente, importantíssima em nossa sociedade, e tentar compreendê-la e decifrá-la é algo que possui valor, quer nós acreditemos, quer não, especialmente em certos campos, entre estes o da medicina, no qual vemos indivíduos recorrer com sucesso a ideias religiosas e espirituais em seus momentos de dor e crise, ao lidarem com o câncer, com doença cardíaca ou com outras moléstias terríveis.

BV — A Legião da Boa Vontade é reconhecida, no Brasil e em outros países, por defender o Ecumenismo Irrestrito. O que o senhor falou é bastante interessante, porque destaca exatamente esse respeito, essa tolerância, que a LBV sempre buscou.
Newberg —
Sim, sem dúvida. Minha esperança é a de que a neuroteologia possa ser proveitosa para os povos do mundo todo, talvez até ajudar a solucionar alguns desses terríveis conflitos ao redor do planeta. (...) Para mim, se existe alguma ideia do que é Deus, penso que tem a ver com um Poder Superior, com a capacidade de nos conectar com algo maior do que o “eu”, de nos tornar melhores do que somos e de abraçar os aspectos mais nobres da Humanidade. (...) Esses não são assuntos apenas para os cientistas, nem somente para os teólogos, e sim para todos.
 

 

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* Neuroteologia — É o campo de investigação científico-multidisciplinar que integra conhecimentos da Psicologia, da Religião, da Espiritualidade e da Neurociência para explicar como o cérebro e o “eu” espiritual se ligam.