Impacto da fome no desenvolvimento cognitivo

Passar fome na infância traz danos físicos e mentais à vida adulta

Wellington Carvalho de Souza

11/02/2022 às 10h11 - sexta-feira | Atualizado em 11/02/2022 às 12h21

Na Holanda de 1944, em consequência da cruel ocupação nazista, cerca de 4,5 milhões de pessoas enfrentaram a fome extrema. Alguns estudos, levando em conta o contexto histórico que perdurou por um ano, estimam que cada holandês consumia apenas 370 calorias por dia. As diretrizes de saúde atuais recomendam como ideal a ingestão diária de 2 mil para as mulheres e de 2,5 mil para os homens. A pesquisadora Tessa Roseboom, professora de Desenvolvimento e Saúde na Primeira Infância na Universidade de Amsterdã, e seus pares coletaram, em arquivos históricos, registros médicos detalhados de grávidas durante o referido período de escassez. Desde então, o grupo tem feito o acompanhamento da saúde física e mental dos filhos dessas mulheres, hoje idosos. Esses indivíduos apresentam maior incidência de obesidade, de colesterol alto, de diabetes tipo 2 e de problemas cardiovasculares do que a população holandesa em geral, “riscos que contribuem para menor bem-estar físico e mental e maior risco de mortalidade nesse grupo”, ressaltou a cientista em uma entrevista à BBC News Brasil.

Um motivo provável é que eles tiveram seus corpos “programados” desde o útero para sobreviver com pouquíssima comida. Ao longo do tempo, isso se converteu em sério problema de saúde. “Encontramos diferenças claras em termos de estrutura e tamanho do corpo e achamos que isso se deve à má nutrição de suas mães quando elas estavam gerando seus bebês”, explicou.

METADE DO PAÍS SEM COMER

No Brasil de 2021, a insegurança alimentar moderada e grave ainda é um gigante desafio a ser superado. Em nosso país, cerca de 116,8 milhões de pessoas, um pouco mais que 50% dos cidadãos, não tiveram, em algum momento, comida no fim de 2020. Desses, conforme dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), 19 milhões sofreram o nível mais alto dessa fatalidade, sem terem muitas vezes uma única refeição ao dia. Os dados são extremamente alarmantes e revelam a urgência de que o cenário que expõem seja revertido pela sociedade o mais rápido possível. Do contrário, um danoso efeito cascata pode se perpetuar. “É impressionante ver como os cérebros [de pessoas gestadas sob a fome] são menores, fazem menos conexões, têm profusão cerebral mais pobre para tarefas cognitivas. A escassez de comida não afeta só a saúde física futura, mas como essas crianças vão se sair na escola, como conseguirão contribuir para o mercado de trabalho”, alertou Tessa Roseboom.

FOME PODE PROVOCAR SINTOMAS SEMELHANTES AO AUTISMO

Pesquisa liderada pelo neurocientista Claudio Alberto Serfaty, professor e chefe do Laboratório de Plasticidade Neural da Universidade Federal Fluminense (UFF), endossa a questão. Ele e sua equipe também concluíram que a má nutrição pode causar danos permanentes, como atraso no amadurecimento e limitação do desempenho da criança e do adolescente. A falta de triptofano, por exemplo, aminoácido presente em proteínas de origem animal ou provenientes de alguns vegetais e sementes, nozes, castanhas e amendoins, reduz drasticamente os níveis de um importante hormônio neurotransmissor: a serotonina. Assim, a capacidade plástica dos circuitos neurais em formação é afetada. Os ácidos graxos do tipo ômega-3 também são fundamentais a diversos processos de desenvolvimento do cérebro, comoa produção de sinapses, que é o ponto de contato entre duas células nervosas, a proliferação e a diferenciação de neurônios e células gliais, bem como o refinamento de circuitos neurais. A carência nutricional deles está associada a distúrbios inflamatórios e neuroinflamatórios, que podem gerar fatores de risco para o déficit de atenção e a hiperatividade, o autismo e a esquizofrenia.

POBREZA: CATIVEIRO MENTAL

Ao enumerar outros sérios estudos, percebe-se ainda que as consequências da fome no organismo são agravadas pelo estresse crônico decorrente da pobreza. O estudo “Poverty impedes cognitive function” (“Pobreza impede a função cognitiva”, em tradução livre), publicado na prestigiada revista Science, revela que a pobreza causa um prejuízo cognitivo enorme sobre quem a enfrenta, fazendo com que o organismo destine poucos recursos cognitivos às atividades que poderiam modificar a situação de vulnerabilidade dessas pessoas, como estudar e trabalhar.

O estudo científico reúne uma série de experimentos conduzidos por pesquisadores das universidades de Princeton e Harvard, nos Estados Unidos, bem como Warwick, na Inglaterra: pessoas de pequena renda previamente instruídas a pensar sobre problemas financeiros tiveram baixo desempenho numa série de testes cognitivos, exibindo uma sobrecarga mental equivalente a ter perdido uma noite inteira de sono. A condição de pobreza impôs um déficit mental semelhante à perda de 13 pontos de Quociente de Inteligência (QI)*, ou ao nível de déficit cognitivo observado em alcoólatras crônicos.

A descoberta enfraquece ainda mais a teoria de que os mais pobres, por causa de sua debilidade inerente, seriam responsáveis pela sua própria dificuldade — ou que deveriam se mostrar capazes de sair dela com esforço suficiente. Essa pesquisa sugere que a condição da pobreza realmente torna mais difícil executar habilidades fundamentais à vida. Ser pobre é, segundo os autores, “lidar não apenas com um déficit financeiro, mas também com um déficit simultâneo de recursos cognitivos”, o que, na prática, já coloca esse indivíduo em uma posição de desvantagem em relação aos que não enfrentam a pobreza.

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*Quociente de Inteligência (QI) — Trata-se de um valor gerado a partir de experimentos desenvolvidos para avaliar as habilidades cognitivas de um indivíduo. Ele expressa, por meio de teste, o nível da capacidade mental de uma pessoa levando em conta a média global e até mesmo a faixa etária. O QI pode ser medido de 0 a 200. Se a pontuação de uma pessoa estiver entre 121 e 130, ela é considerada superdotada. Mas, se estiver entre 20 e 40, significa que seu raciocínio está muito abaixo da média.