Reforma política: Agora vai?

Em seu artigo, o analista político e colunista da revista BOA VONTADE Paulo Kramer apresenta os possíveis desdobramentos para a aprovação ou reprovação da medida

Paulo Kramer

25/05/2015 às 09h41 - segunda-feira | Atualizado em 22/09/2016 às 16h04

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Congresso Nacional, em Brasília, DF.

Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, nos anos ímpares (pré-eleitorais), surgem, no Congresso Nacional, propostas de reforma dos sistemas eleitoral e partidário que, logo em seguida “murcham”, inócuas, quase sem deixar vestígio. Esse ritual volta a ocorrer neste início de legislatura contra o cenário da crise entre os poderes executivo e legislativo, de inéditas proporções, e diante de um nível de impopularidade nunca visto do parlamento, dos partidos e da classe política. Por isso, o novo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (RJ), promete que a Casa votará a reforma política até o fim de maio deste ano.

Arquivo pessoal

Paulo Kramer é analista político, professor ora licenciado da Universidade de Brasília (UnB) e assessor parlamentar.

Antes de examinar os aspectos principais do presente ciclo reformista, convém ajudar o leitor/eleitor a situar-se diante daquilo que se propõe renovar e da direção a ser tomada por essas medidas. Grosso modo, os dois principais sistemas eleitorais procuram responder a questões diferentes, ambos relevantes para o correto relacionamento entre o povo e o poder político. Os sistemas eleitorais majoritários enfatizam a questão da governabilidade — de que forma construir maiorias claras, dotadas de suficiente capacidade para governar? Os sistemas eleitorais proporcionais, por sua vez, privilegiam a questão da representatividade — como garantir que ele espelhe, com o maior grau de fidelidade possível, as diversas correntes de opinião e os grupos de interesses presentes na sociedade? Embora esses valores da governabilidade e da representatividade obviamente não sejam antagônicos entre si, obedecem a princípios distintos, do mesmo modo que, quando se obtém mais de um deles, acarreta redução na disponibilidade do outro. Provavelmente por isso, conforme mostra a volumosa literatura de Ciência Política a respeito do tema, quase nenhuma sociedade se mostra de todo satisfeita com o seu sistema eleitoral. Ao mesmo tempo é compreensível a resistência manifestada por políticos detentores de mandatos em face da reforma, afinal, eles são eleitos (muitas vezes reeleitos) em conformidade com as atuais regras do jogo e, portanto, receiam ter prejuízos em decorrência da mudança.

COMO OCORRE EM OUTRAS NAÇÕES

Nos países de origem anglo-saxônica (Grã-Bretanha, Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia, entre outros)  que adotam o mais “majoritário” dos sistemas — o chamado voto distrital puro —, são cada vez mais comuns as queixas contra as escolhas eleitorais que se afunilam em uma “camisa de força” bipartidária (democratas versus republicanos; conservadores versus trabalhistas), dando pouca ou nenhuma oportunidade para a representação de terceiros ou quartos partidos, de significação política minoritária, porém, relevante. Para ilustrar esse ponto, imaginemos um distrito uninominal no qual está em disputa uma cadeira no parlamento britânico ou na Câmara de Representantes dos Estados Unidos. O número total de votos naquele distrito é 100. Se  o candidato A obtém 51 sufrágios e o candidato B apenas 49, é A quem vai para Westminster ou para o Capitólio em Washington, enquanto os votos dados a B são inteiramente descartados.

Já os países que adotam varian­tes do sistema proporcional — e considero o Brasil um caso particularmente problemático nesse sentido —, o descontentamento tem motivação oposta: os votos populares pulverizam-se em grande número de partidos e candidaturas, o que não apenas confunde a cabeça do eleitor como também dificulta a negociação, com o Poder Legislativo, de acordos indispensáveis à governabilidade. A esse respeito nunca me esqueço das palavras do ex-deputado federal e antigo presidente da Câmara Ibsen Pinheiro (RS). Em 1991, no Congresso Nacional, em Brasília, DF, eu passava perto de uma roda formada por ele e vários repórteres, quando alguém perguntou: “Presidente, por que é tão difícil para esta Casa tomar decisões importantes para a sociedade brasileira?”. A resposta estava na ponta da língua do político gaúcho: “Porque aqui nós somos dezenove minorias”. Pinheiro referia-se, é claro, ao número de partidos então representados na Câmara. O que diria ele dos 22 da legislatura anterior e dos 28 da atual? Aqui no Brasil vigora a modalidade da “lista aberta”, isto é, o próprio eleitor é quem determina a candidatura de sua preferência. Em outros países, como Espanha e Portugal, vige a modalidade da “lista fechada e preordenada”, que é o sistema cujos eleitores votam nos partidos, e não em indivíduos. Esses, em convenção interna prévia ao pleito, hierarquizam, por ordem de preferência, os militantes que os representarão no Parlamento. Dessa forma, no sistema brasileiro de representação proporcional, a lista aberta privilegia a personalidade (para seus críticos, o personalismo) dos políticos que se candidatam, ao passo que a lista fechada favorece a identidade coletiva dos partidos (ou a partidocracia, segundo seus adversários).

Para contornar o dilema da governabilidade versus representatividade, a Alemanha adotou um modelo intermediário, destinado a maximizar os pontos positivos e minimizar os negativos, dos sistemas majoritário e proporcional. O sistema eleitoral alemão é popularmente conhecido como voto distrital misto, mediante o qual o eleitor deposita simultaneamente dois sufrágios: no primeiro ele escolhe, pelo princípio majoritário, um candidato por distrito; no segundo, pelo proporcional, seleciona um partido político constante de lista preordenada nas convenções das diferentes legendas. Assim, no Bundestag, parlamento federal do país, metade das cadeiras fica com os deputados eleitos pelo distrito e, a outra metade, com os situados nas primeiras posições de cada lista.

A maior vantagem, apontada pelos defensores desse sistema, é que ele equilibra a representação entre políticos (com popularidade local) e aqueles que, mesmo incapazes de pessoalmente acumular volume suficiente de votos, ainda expressam tendências políticas relevantes na sociedade alemã. Outro dispositivo importante do sistema germânico é a chamada cláusula de barreira (ou de desempenho): a legenda que não perfizer um número mínimo de votos em todo o país e em um mínimo de Estados não terá direito à representação parlamentar nem acesso aos fundos públicos.

A França, por sua vez, apresenta uma variante do sistema majoritário na qual a escolha de deputados é dentro de um distrito. Se nenhum partido consegue maioria absoluta — metade dos sufrágios mais um —, as duas legendas mais votadas enfrentam-se em um segundo turno. No caso francês, particularidades históricas e culturais impedem que o mecanismo predominante produza aquele já mencionado afunilamento bipartidário, característico das democracias anglo-saxônicas.

Marcos Oliveira/ Agência Senado

Senado Federal.

O ATUAL CICLO DE REFORMA POLÍTICA

Muito embora durante a legislatura anterior (2011-2015), o Senado Federal tenha constituído comissão especial para debate e encaminhamento de mudanças nos sistemas eleitoral e partidário, neste momento as atenções da mídia se concentram na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 352/2013 e em mais algumas outras ora apreciadas pela comissão presidida pelo deputado Marcelo Castro (PI) e relatada pelo seu colega Rodrigo Maia (RJ). A PEC 352 é fruto de um esforço de consolidação, desenvolvido em 2013, do grupo de trabalho coordenado pelo ex-deputado Cândido Vaccarezza (SP). Essa força-tarefa foi instituída com a finalidade de superar os impasses surgidos em torno da comissão especial anterior, relatada pelo deputado gaúcho Henrique Fontana, que tinha como pontos mais salientes o voto em lista fechada e a ampliação do financiamento público de campanha, mudanças que, na avaliação de outros deputados, beneficiariam desproporcionalmente o PT.

No fim de fevereiro, o relator  anunciou que a prioridade do seu texto será a mudança do sistema eleitoral, com destaque para os seguintes pontos: fim das coligações proporcionais (alianças que partidos, muitas vezes com perfis político-ideológicos opostos, articulam exclusivamente para eleger seus candidatos); fim da reeleição consecutiva para presidente da República, governador e prefeito; mandato de cinco anos para todos os cargos eletivos, inclusive para senadores, cujo mandato é de oito anos*; coincidência de todas as eleições em um único ano — os prefeitos e vereadores eleitos em 2016 teriam, excepcionalmente, mandato de seis anos, para que as eleições possam coincidir a partir de 2022; cláusula de barreira, para que partidos só obtenham representação na Câmara se tiverem desempenho nacional mínimo nas urnas (o relator fala em 3% do total dos votos, mas seu partido sugere 5%); criação de federações partidárias, para que, com o término das coligações proporcionais, os partidos tenham tempo de organizar-se para concorrer às próximas eleições; e redução do prazo mínimo entre a filiação partidária e a candidatura, de um ano para seis meses.

Pesquisas recentemente realizadas no Congresso revelam dois sistemas eleitorais que dividem as preferências dos parlamentares no presente ciclo reformista: o primeiro é o voto distrital misto (modelo alemão), uma bandeira tradicional do PSDB, à qual o próprio Castro já declarou ser pessoalmente favorável. O segundo — preconizado por dirigentes do PMDB nacional como o vice-presidente da República, Michel Temer, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, o líder da legenda no Senado, Eunício Oliveira (CE), além de dois nomes da cúpula do DEM: o líder na Câmara, Mendonça Filho (PE) e o próprio presidente da comissão especial, Rodrigo Maia — é uma variante pouco difundida do majoritarismo, tecnicamente rotulada de sistema de voto único não transferível (ou SNTV, do inglês single non-transferable vote) e popularmente conhecida como “distritão”. Nele, as cadeiras da Câmara dos Deputados e das assembleias legislativas são ocupa­das por candidatos que tenham obtido o maior número absoluto de sufrágios. Se um Estado tem direito a 30 cadeiras na Câmara, para lá irão os 30 mais votados. O mesmo vale para os candidatos a vereador, nos municípios.

Os defensores do “distritão” sublinham que, se adotado, ele acabaria com uma das distorções mais criticadas do sistema atual, que permite a candidatos, mesmo com inexpressiva votação, conquistar mandatos parlamentares, graças à “carona” que tomam no coeficiente eleitoral do partido, ou, o que é mais comum, da coligação de partidos “puxados” pelas candidaturas mais populares, enquanto outros, individualmente bem votados, são excluídos. Os críticos desse sistema, por sua vez, apontam que ele enfraquece perigosamente a representatividade dos partidos políticos, na medida em que privilegia as candidaturas individuais com poder econômico suficiente para se projetar em todo o território estadual, convertido em distrito único. E os seus defensores treplicam, ressaltando que o modelo das listas fechadas, frequentemente aventado pelos que se proclamam favoráveis ao fortalecimento partidário, servirá apenas ao controle total sobre a formação da lista por oligarquias que ainda comandam muitas “máquinas” eleitorais pelo país afora.

Outro ponto tradicional de discórdia é a questão do financiamento das campanhas eleitorais — público, privado ou misto? Atualmente, a lei prevê que os partidos sejam financiados pelo Fundo Partidário (dotações orçamentárias federais mais multas aplicadas pela Justiça Eleitoral mais doações, com os recursos sendo alocados, em parte, segundo o número de cadeiras de cada partido na Câmara e, em parte, para todas as legendas oficialmente registradas, com ou sem representação parlamentar) e que os candidatos recebam recursos de pessoas físicas e jurídicas.

Luis Macedo/ Câmara dos Deputados

Câmara dos Deputados.

Projeto conhecido como Eleições Limpas (PL no 6316/2013), patrocinado por dezenas de entidades da sociedade civil, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), e subscrito por mais de uma centena de parlamentares, proíbe doações financeiras de empresas, bancos e outras pessoas jurídicas, para campanhas eleitorais, com punições aos violadores dessa norma que vão desde cassação do registro partidário até a proibição de celebrar contratos com o poder público por cinco anos, além de multa dez vezes superior à quantia doada ilegalmente. As empresas reincidentes teriam decretadas as suas extinções. O programa propõe que as campanhas eleitorais sejam financiadas por pequenas doações de pessoas físicas, com limite de R$ 700,00, e por um Fundo Democrático de Campanhas (recursos do Orçamento da União mais multas administrativas mais multas eleitorais). Em votação no Supremo Tribunal Federal (STF), ainda não concluída, seis ministros já se manifestaram pela proibição de doações por pessoas jurídicas. Na contramão dessa tendência, o ministro Gilmar Mendes, que pediu vista do processo, considera que essa decisão política cabe ao Poder Legislativo, formado por representantes eleitos, e não ao Judiciário. Já o PMDB quer manter o atual sistema misto — público e privado —, porém restringindo as doações a um único partido; hoje, um mesmo financiador pode doar para partidos diferentes. Marcelo Castro assim justifica esta proposta da sua agremiação: “[Um partido] quer vincular a ideologia de uma determinada empresa com um determinado partido político. Então, se a empresa está doando para aquele partido é porque ela comunga de suas ideias. Se ela comunga das ideias daquele partido, não pode comungar das ideias do partido adversário”.

No texto da Lei Orçamentária Anual (LOA/2015), o Congresso aprovou, e a presidente da República manteve sem vetar, a triplicação — de R$ 289,5 milhões para R$ 867,5 milhões — dos recursos do Fundo Partidário, o que gerou pesadas críticas da imprensa. Nos gabinetes do Senado e da Câmara, o aumento foi defendido como alternativa para “salvar” as finanças dos partidos no momento em que a crise econômica e as repercussões negativas acerca dos negócios da Petrobras fizeram estancar as doações tradicionalmente efetuadas por grandes empresas. Algumas vozes discordantes, porém, receiam que a decisão reflita e agrave o descolamento crescente entre o Poder Legislativo e a classe política, de um lado, e, de outro, os cidadãos comuns — trabalhadores, donas de casa, empreendedores e contribuintes —, obrigados a “apertar os cintos” e pagar mais impostos na atual conjuntura recessiva.

Ainda quanto ao papel do dinheiro nas campanhas eleitorais, o presidente Cunha e o líder do PSDB, deputado Antonio Imbassahy (BA), convergem na visão de que a redução da influência do poder econômico na política, com o estabelecimento de tetos para esses gastos em disputas majoritárias (cargos executivos e Senado) e proporcionais (deputados e vereadores), dependerá do baratea­mento das campanhas — e, para o primeiro, também do encurtamento de sua duração no rádio e na TV —, hoje excessivamente calcadas no mar­keting e não no debate de propostas e projetos claramente definidos quanto às suas finalidades, aos seus benefícios coletivos e às disponibilidades orçamentárias para sua execução.

Com a comissão especial que aprecia a PEC 352 e outras propostas de reforma política via mudanças na Constituição (o que depende de quórum mínimo de três quintos dos deputados e dos senadores, em dois turnos de deliberação em cada Casa do Congresso), Castro e Maia acumulam, ainda, a relatoria e a presidência de outra comissão. Nelas, precisam analisar e votar mais de cem Projetos de Lei (PLs), cujas aprovações necessitam apenas da maioria simples e da deliberação em turno único, versando sobre gastos de campanha, custos de rádio e TV, filiação partidária, domicílio eleitoral e “janela de fidelidade” para a troca de partidos.

VOTO FACULTATIVO

Por fim, mas não menos importante, cabe sublinhar que, entre parlamentares de diferentes partidos, parece que se forma um consenso em favor do voto facultativo, contrariando a regra estabelecida em todas as constituições da República Brasileira até hoje. Quem advoga a mudança considera ser um direito exercido por aqueles cidadãos que se interessam em conhecer e acompanhar os rumos da política e do governo e que também têm interesse em fiscalizar o modo como os políticos estão gastando o dinheiro dos impostos, e não um dever impingido aos que não têm interesse por nada disso. Observadores mais cínicos ou desencantados, contudo, argumentam que a introdução do sufrágio facultativo resultará no encarecimento do voto “comprado” por caciques políticos rurais e urbanos. Espero que o amadurecimento cívico da maioria do nosso povo possa desmentir esse triste prognóstico.
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*Vale assinalar que o partido de Marcelo Castro propõe mandato senatorial de dez anos.