Na linha de frente contra as fake news

Quase metade dos brasileiros já recebeu alguma informação falsa sobre vacina, o que torna mais urgente o trabalho sério dos jornalistas

Kássia Karen e Leila Marco

14/02/2022 às 14h10 - segunda-feira | Atualizado em 17/02/2022 às 11h09

Shutterstock

Em um mundo cada vez mais hiperconectado, as pessoas são bombardeadas diariamente com conteúdos, relatos e notícias das mais variadas formas e com uma velocidade sem precedentes. É bem verdade que isso permite dar voz a mais pessoas, tornando o processo de comunicação mais descentralizado, plural. Contudo, traz uma consequência perigosa: um terreno fértil para a proliferação, ainda mais veloz, de informações falsas, as chamadas fake news. Levantamento feito pelo Radar Dotz Locomotiva, em fevereiro deste ano, constatou que 48% já viram ou receberam em seus perfis nas redes sociais notícias falsas relacionadas a vacinas contra a Covid-19. E é nesse cenário que cresce a relevância do jornalismo sério a fim de combater a desinformação e, ao mesmo tempo, instrumentalizar o leitor com todas as ferramentas para agir e proteger-se ante os desafios que se apresentam. São esses especialistas que podem checar e analisar os conteúdos, destacar o que é verdadeiro e o que tem real valor.

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Daniel Ferreira/Metrópoles
Lilian Tahan

Uma das jornalistas da linha de frente da comunicação, a brasiliense Lilian Tahan, em entrevista exclusiva à BOA VONTADE (ed.258), falou das dificuldades enfrentadas pelos colegas da área, das novas tecnologias e das plataformas, enfatizando que, agora mais do nunca, o profissional humano treinado é fundamental para dar a notícia com exatidão, de maneira ética, e desmentir boatos que circulam nas redes sociais. Desde 2015 na direção do Metrópoles, ela contou como fez do portal um dos cinco maiores do Brasil. Para Lilian, o sucesso é o resultado de bastante trabalho, suor e dedicação dos colaboradores do veículo: “Eles se sentem pedra fundamental neste projeto, porque vários deles estão conosco desde o primeiro dia da existência do Metrópoles. Ter essa equipe, que estava lá naquele começo até hoje, agora voando Cruzeiro, faz toda a diferença. Mesmo em momentos tão difíceis como o que estamos passando, eles se entregam [ao trabalho], [dando] até a última gota de energia para fazer a coisa dar certo” .

Formada em Comunicação Social pela Universidade de Brasília (UnB), começou a trabalhar muito cedo, com apenas 17 anos, e passou por grandes veículos da mídia, como o jornal Correio Braziliense e a revista Veja Brasília. Ao longo da carreira, conquistou prestigiados prêmios de jornalismo, como Esso, Embratel, CNT, CNI, AMB, MPT e Engenho.

Ao lembrar o Dia do Jornalista (em 7 de abril), Lilian fez uma homenagem a todos os colegas de profissão, afirmando que é hora, mais do que nunca, de valorizar quem traz a notícia, quem se dedica a filtrar fontes, a apurar a verdade dos fatos e a compartilhá-la com a sociedade, pois é com esse apoio que se combate o vírus da desinformação e se impede a disseminação das fake news.

BV — Neste período de distanciamento social, como o grupo Metrópoles se adaptou para continuar trazendo a notícia na mesma velocidade e com todos os critérios de qualidade?

Lilian Tahan — Foi uma surpresa, um susto, na verdade, quando tudo isso começou, em março completou um ano. No Distrito Federal, acho que o primeiro grande evento foi o fechamento das escolas por um período inicial de cinco dias; naquele instante, eu tive essa informação em primeira mão. Lembro-me de que, na época, pensei: “Nossa, meu Deus, e agora?” Ao mesmo tempo que você entende que [a pandemia] terá um impacto na sua vida e para a sociedade, percebe [que terá] um impacto na redação [também]. Respirei fundo, publicamos a notícia, e, imediatamente, fiz a leitura de que isso ia mexer com a nossa dinâmica de produção. Tomamos uma decisão muito rápida de fazer a transferência do nosso sistema para o home office. Na semana seguinte, passamos todos a trabalhar nesse formato, foi uma adaptação bem-sucedida, porque não houve perdas, em termos de volume de informação produzida, e, consequentemente, de audiência no site, muito pelo contrário. Nem sequer houve um abalo no faturamento que eu pudesse dizer que é importante. No mês de abril, a gente teve de reajustar o nosso tamanho para a realidade que se colocava. Rapidamente, conseguimos recuperar o fôlego e entender como seria esse momento de pandemia, o impacto dele em nosso negócio. Com o fechamento do comércio, as pessoas transitando menos, houve uma transferência de suas necessidades de consumo para o digital, não que não existisse antes, mas muita gente que não consumia on-line passou a ter esse hábito. Como a nossa plataforma disponibiliza espaços para publicidade, houve um acréscimo de aporte financeiro para propagandas de marcas [, o que ajudou a recuperar] aquilo que o grupo perdeu com a venda direta, por exemplo. A gente tem aqui no Distrito Federal o DOOH [digital out of home, ou mídia exterior digital], que são aqueles painéis de led. Se ninguém está na rua, como é que as marcas vão anunciar ali? Então, tivemos um encolhimento, sim, em algumas áreas de atuação, mas um crescimento em outras.

BV — A mídia ganhou destaque neste cenário de crise sanitária mundial?
Lilian Tahan — Eu considero que neste e em qualquer período. O nosso papel mudou um pouquinho ao longo dessas décadas, [mas sempre foi de relevância]. O que acontece hoje é que cada ser humano tem um dispositivo móvel em mãos, qualquer um pode gerar notícia, ou seja, temos milhões de repórteres em potencial trabalhando. Nós vamos considerá-los como opositores, concorrentes ou aliados? São nossos aliados, desde que a gente entenda o compromisso de quem é jornalista, comunicador profissional, que é o da checagem, e [saiba] ouvir o outro lado, que é fundamental. Quantas vezes nos deparamos com um vídeo nas redes sociais e perguntamos: ‘Será que é verdade?’ Nesse ponto exato, entra o jornalista; enquanto as pessoas estão ali [pensando], nós já estamos ligando para as fontes oficiais, tentando ouvir as partes envolvidas, checando o outro lado, enfim, fazendo o cruzamento dos dados, contextualizando com fatos passados e com os que podem acontecer e entregando isso em forma de conteúdo jornalístico. É o compromisso com a verdade.

BV — Esse compromisso se tornou maior com o aumento das fake news?
Lilian Tahan —
Na verdade, acabamos usando esse termo em inglês, mas fake news não é nada mais do que mentira, e isso existe desde sempre. Sabemos que regimes políticos inteiros se sustentaram, às vezes, na base da mentira. Só que há uma diferença. Hoje, da mesma forma que o potencial de uma mentira é enorme, porque rapidamente se espalha, a gente também consegue desmenti-la, o potencial está para os dois lados. Antigamente, quando só se dispunha do papel, você precisava de 24 horas, às vezes mais tempo, para imprimir uma notícia, aquilo ali demorava, havia todo um ciclo para ser corrigido. Agora, imediatamente se consegue desmenti-la. Então, ganha-se agilidade com a mesma tecnologia que viraliza uma fake news; ela nos ajuda a derrubar essa mentira.

BV — Quais as ferramentas e técnicas que sua equipe tem utilizado para desmascarar autores da desinformação sobre a Covid-19?
Lilian Tahan —
O bom jornalismo faz-se essencialmente com o material humano, é o nosso tesouro. Para você ter um bom veículo de comunicação, precisa ter muita gente. Há várias experiências já de máquina que substitui [o profissional], até mesmo de robô que “produz” a notícia, quando esta não precisa de grandes apurações, e entrega aquilo ali rapidamente. Mas o jornalismo investigativo, esse de checagem rápida, quanto mais profissionais bem formados se tem em uma redação, mais rapidamente e de maneira completa ocorre a entrega do resultado, com uma checagem efetiva. A primeira coisa é saber de onde veio o material, se há algum processo [em torno do assunto], quem são as partes envolvidas, ligar para especialistas, contextualizar. (...) Quanto mais experimentado é o jornalista, o repórter, mais fontes tem para fazer a checagem rápida da informação e poderá ter vozes diversas para ouvir o contraditório. Nós temos uma redação [no Metrópoles] que é uma das maiores do país, porque houve um movimento de encolhimento nos últimos tempos, em função não só da crise no país, mundial, mas da crise dos veículos de comunicação, que tiveram de fazer um bom trabalho, mesmo tendo menos tempo [e profissionais para auxiliá-los]. Isso leva as pessoas à exaustão. Há muita gente cansada, com crise de pânico, sofrendo as consequências de ter mais serviço com menos pessoas para dividi-lo.

BV — Quem são os principais agentes desses conteúdos falsos?
Lilian Tahan —
Qualquer um pode ser um agente de conteúdo falso. Quando me referi aos robôs, estava falando de Inteligência Artificial mesmo. Já existem experiências no mundo da comunicação de máquinas que produzem conteúdos, mas são conteúdos verdadeiros. (...) Mas, neste caso, a questão é outra, [estamos falando de] robôs a serviço da desinformação. Na verdade, são replicadores de desinformação, trata-se de um exército virtual. Qualquer um pode lançar a sementinha por telefone, pelo WhatsApp, e aquilo começa a ganhar corpo se há uma rede de replicadores. (...) Já passou da hora de as autoridades investigarem a internet como um ambiente, realmente, passível de cometimento de crime, porque essas mentiras têm consequências, que podem, inclusive, definir a vida e levar à morte de indivíduos, especialmente neste período de pandemia.

BV — Há como evitar as fake news no ambiente jornalístico?
Lilian Tahan —
Com todo esse processo de checagem, diminui, drasticamente, a possibilidade do erro. Claro que eles sempre ocorrerão, somos humanos, lógico que pode acontecer um equívoco, mas há dois fatores, a figura do ombudsman, que é aquele que lê o jornal para encontrar problemas, não erros pontuais de digitação, de português, bem mais que isso. Trata-se de uma figura importante ao longo de décadas no jornalismo, hoje tem alguns veículos pontuais que trabalham com essa figura, como os jornais Folha de S.Paulo e O Povo, de Fortaleza, mas a grande verdade é que todos os nossos leitores que têm acesso [aos nossos conteúdos] e podem se comunicar com a gente pelas redes sociais, eles são ombudsmen. Assim, quando há qualquer desinformação, quando um erro que não se percebe é publicado, imediatamente chovem pessoas apontando, e são comentários sempre bem-vindos, porque a verdade é que todos esses “checadores” estão ali para criar um processo de correção instantâneo. Eu tive uma experiência interessante. Passei mais de um mês na Alemanha, estudando os veículos de lá, foi uma oportunidade muito importante, porque a embaixada [brasileira] levou alguns jornalistas, e eu conheci a sede da revista Der Spiegel, que é super tradicional. Um dos colegas perguntou para o editor-chefe da Der Spiegel: “Como vocês agem quando há erros? Fazem uma retratação?” E, aí, ele interrompeu esse colega e falou: “Não, não. Aqui a gente não erra”. Eu achei tão arrogante — ainda que seja uma publicação conhecida e reconhecida por ser bastante correta —, mas é lógico que era umaretórica dele. O que esse editor quis dizer e depois até complementou foi: “A gente tem mais checador do que repórter. Uma informação para ser publicada aqui é apurada, checada e revisada”.

BV — Temos visto um comportamento irresponsável de alguns indivíduos pelas ruas, como a falta de distanciamento social, o uso incorreto de máscaras. Isso também é resultado dessas mentiras plantadas na internet?
Lilian Tahan —
É resultado da falta de educação, e isso também tem a ver com a desinformação, com a ignorância. É um conjunto de fatores. (...) O antídoto para tentar diminuir um pouco o dano que esse tipo de desinformação causa é ensinar as pessoas, o máximo que a gente puder, a checar a origem da informação. Quantas vezes você recebe uma notícia [, por exemplo, que diz] “Você vai se curar” ou “Você vai adoecer se tal coisa...”? [Quando isso acontecer,] pesquise no Google para ver se encontra alguma fonte confiável para respaldar a informação. Há várias plataformas que fazem jornalismo profissional, e, se for algo relevante, [essa notícia] vai estar contemplada em uma dessas plataformas. Se a pessoa fizer esse movimento de checar a informação, ela vai se deparar com conteúdo verdadeiro e de fácil acesso.

BV — Há uma estimativa de quantos boatos foram desmentidos pelo Metrópoles em 2020?
Lilian Tahan —
É difícil dizer com precisão, mas todos os dias temos matérias desmentindo algo. Às vezes, não sai na forma: “Olha, isso aqui é fake news”, mas só o fato de dar a informação que é correta já é uma forma de corrigir aquela que não é. Possuímos também parceiros de plataformas de checagem da informação; então, como agente público, há uma média de 280 a 300 conteúdos por dia, a maioria deles é restabelecendo a verdade.

BV — A mídia tem se notabilizado ainda por ser portadora de palavras de alento, ao mostrar os avanços da Ciência no combate ao novo coronavírus, bem como se engajado em ações solidárias. Como vê o papel social da imprensa?
Lilian Tahan —
Ele é enorme, de mobilização, de sensibilização, de plantar a semente da empatia, às vezes, também, a da indignação. Vou dar um exemplo: uma vez me mandaram uma mensagem dizendo: “Eu estou com um irmão no hospital de Ceilândia, ele tem só 38 anos, pegou Covid-19 e vai morrer se não tiver apoio. Ele não está conseguindo respirar”. Então, pedi que mandassem o vídeo, porque nada melhor do que a própria pessoa dizer o drama que está passando. A partir desse material que publiquei, rapidamente, uma grande corrente em dois sentidos muito bonitos [se formou], o vídeo teve mais de 300 mil views. Uma série de pessoas mobilizaram-se para ajudá-lo. Ele se sentiu acolhido, amparado e está em processo de recuperação. Por isso, eu acho que a gente tem um papel que, se bem executado, pode fazer a diferença na vida das pessoas.