ENTREVISTA EXCLUSIVA: diretora-executiva da ONU Mulheres fala à revista BOA VONTADE

Para Phumzile, estamos no momento de dar passos audaciosos rumo à igualdade de gênero

Da redação

08/03/2015 às 08h50 - domingo | Atualizado em 22/09/2016 às 16h04

Marco Grob
Phumzile Mlambo-Ngcuka

Desde que assumiu, há quase dois anos, a diretoria-executiva da ONU Mulheres, Phumzile Mlambo-Ngcuka tem conduzido a entidade com toda a sua experiência na questão dos direitos femininos, forte liderança estratégica e prática administrativa. Em maio de 2014, durante o lançamento da campanha internacional Pequim+20 — cujo lema é “Empoderar as Mulheres. Empoderar a Humanidade. Imagine!” —, ela ressaltou que os povos vivem um momento sem precedentes na História, em que se faz um esforço coletivo para alcançar os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) até 2015 e para definir o próximo conjunto de metas mundiais: os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Por isso, enfatizou: “Devemos aproveitar esta oportunidade única, uma em cada geração, para posicionar a igualdade de gênero, os direitos das mulheres e o empoderamento das mulheres firmemente no centro da agenda global”.

No currículo, Phumzile coleciona passagens marcantes pela política da África do Sul, seu país natal, tendo sido a primeira mulher a ocupar o cargo de vice-presidente, de 2005 a 2008. Tornou-se membro do Parlamento em 1994 e presidiu o Comitê de Serviço Público. Também foi vice-ministra do Departamento de Comércio e Indústria (1996- 1999), ministra de Minas e Energia (1999-2005) e ministra interina de Artes, Cultura, Ciência e Tecnologia (2004). Em 2008, criou a Fundação Umlambo, com o intuito de dar suporte a escolas em áreas pobres da África do Sul, prestando-lhes orientação e treinamento de professores, e da República do Malawi, ajudando a ocasionar melhorias nos estabelecimentos de ensino por meio do apoio de parceiros locais.

Em entrevista exclusiva à revista BOA VONTADE, a diretora-executiva falou, entre outros assuntos, do 20º aniversário da Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres — ocorrida em 1995, em Pequim, na China —, a ser celebrado quando da 59a Sessão da Comissão sobre a Situação da Mulher (CSW, na sigla em inglês), que será realizada entre 9 e 20 de março deste ano, na sede da Organização das Nações Unidas (ONU) em Nova York, nos Estados Unidos. De acordo com ela, este é o momento ideal para caminhar audaciosamente rumo à igualdade de gênero e ao empoderamento feminino, encurtando, assim, o prazo para a consolidação da Plataforma de Ação de Pequim, a fim de que mulheres e meninas tenham realmente direitos iguais aos do gênero masculino, liberdade e plenas oportunidades em todos os setores da vida.

BOA VONTADE — Desde a Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres, quais foram os principais avanços na luta pela igualdade?

Mlambo-Ngcuka — Demos passos importantes nos últimos vinte anos. Há maior conscientização para a necessidade de as mulheres estarem em pé de igualdade em todas as esferas de participação política e socioeconômica. Novas leis e políticas foram adotadas para promover a igualdade de gênero em todos os âmbitos das atividades pública e privada. Avanços significativos foram feitos na agenda mundial de políticas no que tange a envolver globalmente as mulheres nas iniciativas de paz e segurança. Estamos perto de atingir paridade de gênero no ensino básico, e, na maioria das regiões, atualmente há mais mulheres matriculadas em universidades do que homens. Apesar dessas conquistas, (...) uma em cada três mulheres é vítima de violência sexual ou já sofreu maus-tratos por parte do parceiro. Elas continuam carregando o fardo do trabalho doméstico não remunerado e permanecem completamente sub-representadas nas tomadas de decisão, tanto na esfera pública quanto no setor privado. As mulheres ainda recebem de 10% a 30% menos do que os homens, estão concentradas em trabalhos vulnerá- veis e informais, e somente um em cada cinco parlamentares é mulher.

BV — Qual é a maior preocupação da agenda da ONU Mulheres para o desenvolvimento pós-2015?

Mlambo-Ngcuka — Apesar de os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio terem impulsionado progressos significativos, atraído a atenção mundial e desencadeado ações em todo o globo, os resultados desiguais obtidos não foram muito longe na resolução de questões estruturais importantes. Por exemplo, o ODM sobre igualdade de gê- nero e autonomia feminina não abordou questões como o direito da mulher de ter propriedades, a divisão desigual das responsabilidades de cuidar da família e do trabalho doméstico, a saúde e os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, a violência contra meninas e mulheres e a baixa participação feminina nas tomadas de decisão em todos os níveis. O Fórum Econômico Mundial estima que, no atual ritmo de progresso, a igualdade de gênero, em termos de oportunidade e participação econômica, só se tornará realidade daqui a oitenta e um anos. Não podemos esperar tanto. Os governos precisam lidar de maneira abrangente com essas questões estruturais, para que a igualdade de gênero possa concretizar-se até 2030. A ONU Mulheres, portanto, defende o objetivo, independentemente da agenda de desenvolvimento pós- -2015 de atingir a igualdade de gênero e de integrá-la a todas as outras áreas e objetivos prioritários, com metas e indicadores bem definidos.

BV — Fazendo uma análise dos 20 anos da Plataforma de Ação de Pequim e dos 15 anos da Cúpula do Milênio, o  que precisa ser diferente para que os países alcancem a paridade de gênero?

Mlambo-Ngcuka — Temos uma enorme lacuna a preencher se quisermos atingir o objetivo de viver em um mundo sem desigualdade de gênero. Normas sociais discriminatórias profundamente enraizadas ainda persistem, bem como estereótipos e práticas que impedem esse progresso. Em algumas das regiões do mundo (...), temos de trabalhar ainda mais arduamente a fim de apoiar a criação de espaços seguros para as meninas irem à escola e assumirem papéis profissionais e para as mulheres se candidatarem a cargos políticos sem medo de violência e/ou intimidação. (...) Todas as áreas do governo devem responsabilizar-se e prestar contas da implementação das medidas de igualdade de gênero: dos vilarejos às cidades, do chão da fábrica aos corredores do poder. As leis existentes devem ser cumpridas, e, nos casos em que não haja leis, estas devem ser criadas. Os 128 países que têm pelo menos uma diferença legal entre mulheres e homens devem rever suas leis. Temos de redefinir o que chamamos de progresso e elevar nossas expectativas para dar saltos audaciosos, e não pequenos passos incrementais. Em setembro, vamos pedir a cada chefe de Estado que se comprometa com um plano de ação, um roteiro para um futuro melhor no que tange às mulheres, que indique como serão disponibilizados recursos para os novos compromissos.

BV — Qual é o papel da América do Sul nesse contexto?

Mlambo-Ngcuka — A região da Amé- rica Latina e do Caribe é inspiradora em muitos aspectos. Há notáveis mulheres que são chefes de Estado e presidentes; por exemplo, na Argentina, no Brasil e no Chile, país este que tem como presidente Michelle Bachelet, minha antecessora na ONU Mulheres. A região tem os mais altos níveis de representação feminina no Parlamento, com 26%. Também foi a primeira região a aprovar um documento obrigatório para prevenir, punir e erradicar a violência contra meninas e mulheres: a Convenção de Belém do Pará, de 1994. Essa poderosa convenção serviu de base para o documento da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Domésti-ca, [mais conhecida como] a Convenção de Istambul, que entrou em vigor no ano passado. A América Latina e o Caribe deram passos significativos rumo à indenização de vítimas de violência sexual em conflitos, à paz e à segurança. Na Colômbia, por exemplo, a sociedade civil, apoiada pela ONU Mulheres, conseguiu defender, com sucesso, uma análise de gêneros mais firme e uma maior representação feminina nas conversações de paz entre o governo e as Farc [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia].

BV — A LBV defende a necessidade de as questões de gênero serem reforçadas nos currículos escolares. Em sua opinião, qual seria a melhor estratégia para tornar as práticas educacionais mais sensíveis a essa questão?

Mlambo-Ngcuka — Parabenizo a Legião da Boa Vontade pela ênfase que dá ao fortalecimento da sensibilidade de gênero nas práticas educacionais. Como vocês, eu acredito firmemente que as perspectivas de gênero devem ser reforçadas na educação. (...) Como fazer isso de modo que haja um impacto amplo e sustentá- vel? Fortalecer a sensibilidade de gênero na educação não quer dizer acrescentar um componente de gênero a processos e estratégias que são inerentemente tendenciosos nesse sentido. Por exemplo, não é suficiente aumentar o número de professoras se não houver iniciativas para transformar a maneira como ensinam e para revisar o currículo, a fim de que se ofereçam oportunidades de aprendizagem iguais para ambos os sexos. Da mesma forma, aumentar a matrícula de meninas em cursos que continuam voltados aos interesses dos meninos é algo que não vai levar aos resultados desejados. Devemos revisar nossos currículos e métodos de ensino, oferecer instalações escolares que atendam às necessidades de meninas e meninos e garantir a segurança e a proteção das meninas na educação. Também precisamos encontrar maneiras de ensinar ciência, tecnologia, engenharia e matemática (áreas conhecidas como STEM, na sigla em inglês) que sejam adequadas para elas, de modo que, ao saírem da faculdade, estejam preparadas para concorrer em um mercado [de trabalho] cada vez mais voltado a empregos em ciência e tecnologia. Isso é fundamental se quisermos manter o interesse de meninas e mulheres na educação, a fim de que elas permaneçam matriculadas por maior tempo e se formem com habilidades relevantes.