Antirracismo, uma postura necessária

Dados do Instituto Locomotiva apontam que a maior parte da população enxerga o racismo no cotidiano, porém poucos o reconhecem em si mesmos, reforçando a ideia de que o preconceito se mantém também por meio da negação e da falta de autoconhecimento

Wellington Carvalho de Souza

05/05/2022 às 08h58 - quinta-feira | Atualizado em 19/11/2025 às 16h27

Pexels Katerina Holmes

A humanidade tem avançado em feitos extraordinários ao longo das eras. Vários são os exemplos disso, como o marcante evento do dia 20 de julho de 1969, quando o astronauta norte-americano Neil Armstrong (1930–2012) pisou na Lua. No entanto, apesar de o ser humano conseguir viajar ao Espaço, ainda há importantes e necessárias conquistas a serem priorizadas aqui no planeta Terra — sem intolerâncias de qualquer tipo. Uma delas é erradicar o racismo, tipo de preconceito lamentavelmente ainda comum em várias nações.

No Brasil, não são raras as vezes em que a agressão a negros, seja física, verbal ou psicológica, chama a atenção nos noticiários. Em 2025, um levantamento nacional identificou que 84% das pessoas negras afirmam já ter sofrido discriminação racial, muitas vezes em situações cotidianas, como receber atendimento inferior, ser seguido em lojas ou ser desclassificado em processos seletivos mesmo tendo a melhor formação. Esse dado reforça que o racismo não é exceção, mas realidade ainda estrutural.

João Periotto
Iracy Guerra

Iracy Guerra, coordenadora de produção de conteúdo da Legião da Boa Vontade em São Paulo/SP, está entre aqueles que vivenciaram diretamente essa discriminação estrutural, sustentada pela construção social brasileira que, historicamente, favoreceu pessoas brancas em detrimento de negros e indígenas. A comunicadora, que cresceu na comunidade do Vidigal, no Rio de Janeiro/RJ, relembrou momentos tristes que vivenciou desde a infância: “A gente chega à escola achando que todos os colegas terão o mesmo tratamento. Enquanto crianças, não sabemos que há alguma diferenciação até sermos apresentados à paleta de lápis de cor: quando vemos que o tom ‘cor de pele’ é salmão, nos perguntamos: ‘Ué... Qual é a minha cor?’ Aquele sentimento de invisibilidade já começa na infância, num lugar onde deveria haver construção, interação social, desenvolvimento. A criança negra se sente invisível”, explicou. “Quando participava das rodas de conversa no colégio, estava sempre muito acuada. Falavam meu nome, e eu me escondia [lágrimas]. Era assim que eu me via na escola. Quando os colegas brancos falavam, os professores e demais interagiam felizes, sorrindo; quando um negro começava a falar, já olhavam com ‘rabo de olho’ e diziam: ‘Já vem arranjar confusão’.

Essas reflexões foram compartilhadas durante o encontro on-line “Como se combate o racismo no ambiente profissional?”, promovido pela LBV para colaboradores de todo o Brasil. A Instituição já realiza há décadas ações de conscientização, diálogo e formação em suas escolas e Centros Comunitários de Assistência Social, com aulas, palestras e oficinas que mantêm o tema vivo e necessário entre crianças, jovens e adultos.

A Legião da Boa Vontade é pioneira nessas reflexões. Ainda na década de 1980, o jornalista e escritor Paiva Netto, presidente da Entidade, abordava o tema em programas de rádio e TV, como no emblemático artigo “Racismo é obscenidade”, publicado antes do centenário da Abolição da Escravatura, ocorrida em 13 de maio de 1888.

Na África do Sul, o regime segregacionista Apartheid também era realidade, vale salientar.

DERRUBANDO AS ESTRUTURAS DO RACISMO

O encontro foi conduzido pela biblioteconomista e cientista da informação Letycia Elizabeth e pelo sociólogo Daniel Guimarães, ambos apresentadores da Boa Vontade TV. Letycia relatou como, enquanto ex-aluna da LBV, sentiu-se motivada a ingressar no Ensino Superior, rompendo barreiras sociais que ainda afastam pessoas negras de espaços acadêmicos. Além dela, sua mãe, Maria Solange, conquistou o diploma em Contabilidade aos 60 anos, prova de que a educação pode transformar realidades.

Para Letycia, quando pessoas negras não ocupam determinados espaços, isso não tem relação com falta de capacidade, mas com portas que muitas vezes sequer chegam a ser abertas. Ela destacou que organizações que não valorizam a diversidade perdem em inovação, visão estratégica e até produtividade.

Daniel reforçou que a luta contra o racismo não cabe apenas a quem sofre na pele a discriminação. Segundo ele, é fundamental que pessoas não negras revejam atitudes, revisem expressões usadas no cotidiano e se mantenham em constante aprendizado e autocrítica:

“Não devemos tratar esse debate como responsabilidade exclusiva das pessoas negras. A luta contra o racismo é de todos nós.”

Ele lembrou que comentários, atitudes e piadas aparentemente pequenos para quem comete podem causar dor e sofrimento profundo em quem recebe.

“Pessoas negras que não ocupam alguns espaços não deixam de estar porque são incompetentes ou não têm vontade própria. (...) Olhar para esse cenário que vivemos hoje no nosso país e achar que é só uma questão de vontade é algo muito injusto, porque a gente, infelizmente, vive uma realidade em que portas nem são abertas quando se há características específicas de etnia”, evidenciou.

Interagindo com centenas de pessoas presentes durante a transmissão, Letycia realçou quanto “precisamos entender que a diversidade não é algo que nos enfraquece. Ela é algo que nos fortalece. A gente perde quando não tem uma equipe diversa [no trabalho], perde do ponto de vista econômico, administrativo e, acima de tudo, espiritual”. Por sua vez, Daniel destacou que o fomento da consciência antirracista é algo a ser cultivado também por quem não sofre o preconceito étnico, a começar por aparentes “mínimas” mudanças, como excluir expressões negativas do vocabulário (veja algumas no boxe). “Não devemos deixar esse debate ser tratado como uma responsabilidade única e exclusiva das pessoas negras. Todos nós temos que nos atualizar constantemente. Buscar estar a par dessas discussões e não fazer comentários desatualizados. Assim, a gente fará a nossa parte, porque a luta contra o racismo é de todos nós”, declarou.

Ele prosseguiu: “(...) Se eu não vivencio a experiência do preconceito étnico, tenho que compreender que não posso falar como se conhecesse a dor que uma pessoa negra ou indígena sente. Entretanto, isso não me exime. É minha responsabilidade me inteirar sobre esse assunto, não fazer comentários e não ter atitudes que sejam ofensivas. Isso é um exercício de autocrítica, de aprendizado constante, de olhar para a nossa própria história, reconhecer que erramos muitas vezes, mas que temos esse compromisso permanente com a nossa própria melhoria. (...) Os atos que fortalecem o racismo ocorrem de forma sutil para quem o comete, mas, para quem sofre, essa violência é sentida de forma dolorosa e provoca muito sofrimento”.

CONGRAÇADOS PELO AMOR

O sociólogo Daniel reforçou que é preciso olhar o ser humano com solidariedade, senso crítico e generosidade, reconhecendo desigualdades e atuando para transformá-las. Esse olhar ecumênico e fraterno, destacou ele, é naturalmente antirracista.

Iracy compartilha da mesma visão:

“O respeito ao outro tem que ser algo natural. Nós nascemos para amar, como Jesus nos ensinou.”

Ela celebrou o espaço seguro criado dentro da LBV para tratar de dores profundas que muitos carregam em silêncio e expressou um sonho compartilhado:

“Sonhamos em viver numa sociedade em que os negros sejam respeitados, não discriminados nem julgados pela cor da pele.”

Iracy encerrou dizendo-se feliz por fazer parte da Instituição e por ter voz e acolhimento para compartilhar sua história.