Ártico e Antártica: degelo acelerado

Cientista brasileiro com doutorado na Universidade de Cambridge fala dos impactos do aquecimento global maior do que o previsto nos extremos da Terra

Leila Marco e Alan Lincoln

Tuesday | October 11, 2022 | 7:31 AM | Last update: October 14, 2022, 3:14 PM (Brasilia time)

Muito se discute sobre as mudanças do clima, que causam não só transformações na temperatura, como também na intensidade das chuvas e eventos climáticos extremos, como furacões e ondas de calor devastadoras. De acordo com boa parte da comunidade acadêmica, essas alterações estão aí diante de nossos olhos e ainda não existe uma reação necessária das pessoas para freá-las. A Organização das Nações Unidas (ONU) é um dos organismos internacionais que, frequentemente, publica relatórios sobre a situação atual do planeta, destacando que, se não forem tomadas medidas drásticas, nos próximos dez anos, a humanidade pode enfrentar danos irreversíveis do mundo natural e o colapso de sociedades.

Entre as evidências desse novo panorama estão o declínio do gelo marinho. Estudo recente feito por cientistas na Finlândia dá conta de que o Ártico, nas últimas quatro décadas, vem aquecendo quatro vezes mais do que a média global, superando a previsão anterior, que seria de duas a três vezes, e chegando até sete vezes mais rápido em algumas regiões, como no Mar de Barents, ao norte da Noruega e da Rússia.

Arquivo Pessoal

Jefferson Cardia Simões

Para falar sobre o que representam essas alterações, a revista BOA VONTADE entrevistou o gaúcho Jefferson Cardia Simões, que já participou de 25 expedições científicas para as duas regiões polares do planeta (os Polos Norte e Sul). O professor é doutor em Glaciologia pela Universidade de Cambridge (Inglaterra), geólogo e especialista em Geologia Marinha pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Além disso, o pesquisador coordenou a utilização do Criosfera 1 — o primeiro módulo científico brasileiro instalado no interior do continente Antártico — e é ainda vice-presidente de Finanças do Comitê Científico de Pesquisa Antártica (SCAR, na sigla em inglês), do Conselho Internacional de Ciência (Internacional Science Council — ISC).

Ele explicou como esses fatos estão se dando e o impacto deles em nossa sociedade, ressaltando que já não há dúvidas de que o aceleramento dessas mudanças está em grande parte ligado à atividade humana, especialmente à emissão na atmosfera de enormes quantidades de gases do efeito estufa, como o CO2 e o metano. A seguir, os trechos principais dessa conversa.

Sobre a crença de que o degelo das massas polares é algo distante do nosso cotidiano

Jefferson Simões — Talvez exista ainda o mito do país tropical isolado do planeta, mas a Antártica, por exemplo, está muito perto. Nós não nos damos conta dessa proximidade, são só 3,1 mil quilômetros daqui até a Antártica. Além disso, é importante entendermos o que é a massa de gelo do planeta. Nós temos a Criosfera, a superfície de neve e gelo da Terra, que cobre 10% da superfície terrestre e tem quatro componentes: as geleiras e os mantos de gelo, o mar congelado, o Permafrost (que é o solo permanentemente congelado) e também a neve sazonal, aquela que cai, derrete no mesmo ano e desaparece. Se pegarmos a maioria do gelo em termos de volume, ele está nas geleiras e nos mantos de gelo polares, acima do nível do mar, sobre ilhas e continentes. Vejamos a Antártica, que é mais próxima do Brasil e onde está 90% do gelo do planeta. São cerca de 25 milhões de quilômetros cúbicos de gelo, um número que é incompreensível, mas, se a gente pegar esse volume e comparar com todo o território nacional, os 8,5 milhões de quilômetros quadrados dão uma camada homogênea de três quilômetros de espessura. Imagine que você está em São Paulo e tem três quilômetros de gelo na cabeça, em Manaus mais três quilômetros. É claro que uma pequena modificação nele, seja um derretimento de 1%, 2%, por exemplo, irá correr para o mar, e essa água elevará os níveis do oceano, ou seja, afetará a sua praia, a sua construção, a estrutura portuária... Ou, pior ainda, as habitações que não são muito boas. (...) Novamente, quem será mais afetada é a população vulnerável, aquelas pessoas que moram em favelas, em palafitas perto ou mesmo dentro da água.

O que o degelo das regiões polares pode significar para o planeta

Jefferson Simões — Uma das grandes questões ambientais do momento é de que forma esse grande manto de gelo e a Groenlândia estão respondendo [ao fato de o planeta estar ficando mais quente]. Mas há outros componentes, a exemplo do mar congelado ao redor da Antártica, que congela e descongela sazonalmente, e do Ártico, onde ocorre o mesmo processo, porque o Ártico em si, descontando a Groelândia e uma série de ilhas em sua periferia, o seu centro é um oceano. O solo congelado hoje ainda cobre 30% da massa continental da Terra. O Hemisfério Norte, a Sibéria, o Canadá e o Alasca têm gelo no solo que também derrete, do qual está escapando, com o seu derretimento, principalmente o gás metano, além da neve sazonal. (...) Os Andes já perderam 40% da área de geleiras nos últimos 40, 50 anos; a Islândia está perdendo muito gelo, assim como os Alpes, o Himalaia etc., mas isso é menos de 1% do volume. Nós temos a Groelândia, que começa a derreter, e isso é importante: se ela toda dissolver, sumir, o nível médio dos mares aumentaria em cerca de seis metros. Opa! Seis metros já começam a assustar. O derretimento do restante daquele gelo, desconsiderando a Antártica, aumentaria até no máximo uns 50 centímetros... Isso é importante porque este aumento é vertical. O avanço continente adentro pelo mar pode ser de quilômetros. Por exemplo, eu não compro casa na praia, o motivo é que a geração dos meus netos certamente não poderá usufruir dela. Mas a grande questão é o que acontecerá com a Antártica, será que ela irá começar a derreter? Ela é essencial para o equilíbrio ambiental do planeta, porque, se o gelo todo da Antártica derreter, o nível médio dos mares subiria 60 metros. Não entre em pânico, porque não existe maneira para que isso ocorra a menos de milhares e milhares de anos, porque seria preciso muita energia; mas nós temos cenários para os próximos 200, 300 anos que seriam mais catastróficos, no qual o degelo de parte da Antártica poderia contribuir com mais cinco, seis metros no alimento do nível do mar. (...) Os nossos melhores cenários dizem que teremos um aumento mínimo do nível médio dos mares de 30 centímetros e de no máximo 1,20 metro até 2100. É bom destacar que oceano médio não é igual em qualquer lugar, [algumas localidades] irão aumentar a altura máxima de 1,2 metro. Ah!, não é catastrófico, mas isso trará um forte custo social e econômico. Imagine a remoção de populações, estrutura portuária, defesa costeira, construções, o próprio turismo, a praia... São valores de trilhões de dólares, porque estou falando da Antártica, que é enorme e onde está 90% da massa de gelo da Terra. Lugares planos, os que estão ao nível do mar, como algumas ilhas do Pacífico, serão impactados, poderão ser destruídos. (...) Nós temos outro componente que é muito importante: (...) o mar congelado, quando ele se forma, muda todas as características da superfície do planeta, dificultando o fluxo de energia que sai dos oceanos para a atmosfera. Nós já observamos que o mar congelado no Ártico está desaparecendo velozmente e, com ele, estamos observando uma série de ondas de calor penetrando bem mais rapidamente Ártico a dentro, além do que estudos apontam para o aumento da variabilidade do clima do Hemisfério Norte, que já começa a refletir também no Hemisfério Sul. Há uma série de razões mais complexas, mas o motivo básico é essa menor extensão do mar congelado. (...) Temos ainda o Permafrost (solo congelado), na Sibéria, no norte do Canadá, tem gelo no meio do solo e, dentro dele, há metano, o CH4, que é um gás que intensifica o efeito estufa e está sendo jogado mais rapidamente na atmosfera, o que leva a um maior aquecimento. É o que em português se chama de retro processamento: mais aquecimento derrete mais o solo congelado, que libera mais metano, que aquece mais a atmosfera, que derrete mais gelo do Permafrost e assim por diante. As mudanças do clima sempre existiram, com a presença ou não do homem, e sempre existirão. As espécies adaptaram-se, evoluíram, mas nunca nessa velocidade. O que nós estamos tratando aqui é sobre a velocidade com que os processos realizados pelo homem estão causando nas mudanças ambientais. Então, temos problemas de adaptação. Alguns organismos, às vezes, conseguem lidar; outros, não. Imagine que para a flora é muito mais difícil, e a mesma coisa para a sociedade. O impacto nesta não é homogêneo, depende do poder aquisitivo, da geografia, da morfologia do local, do seu tipo de acomodação... Tudo isso afeta a resposta humana diante dessas mudanças.

A diferença entre tempo e clima

Jefferson Simões — Quando falamos em clima, [há um panorama mais prolongado,] estamos nos referindo em média de 30, 40, 50 anos. Não é o tempo meteorológico, o qual confunde muito os leigos. Ah!, eu abri a janela e está frio hoje, cadê o aquecimento global? Não tem nada a ver, porque esse é o tempo meteorológico, o que varia de dia para dia. Nós [cientistas] trabalhamos com processos de longos meses, de longos anos, por meio de medições dos arquivos, inclusive de arquivos históricos, para saber como variou o clima do planeta por milhares de anos. E fica claro nessa análise que esse aumento que vemos da temperatura, da variabilidade de eventos extremos, não constatamos em nenhum período anterior. Geralmente adotamos [um período de] 100 anos, porque o que nos interessa é o que temos de fazer para adaptar, reajustar a sociedade para essa nova situação, de maneira que seja sustentável e com a esperança de que as próximas gerações saibam contornar o problema, seja pelo uso de tecnologias ou por adotar um processo que não consuma tanta energia. O que a gente sabe é que o atual modo de vida não está compatível com os limites físicos da Terra: nós temos oito bilhões de indivíduos, que não podem almejar viver como países que desperdiçam energia, a exemplo dos Estados Unidos. De que forma vamos compartilhar esse planeta? Um planeta que, não nos demos conta ainda, é finito, pequeno e com uma população que não para de crescer, ela tende a se estabilizar ao redor de 10 bilhões, mas nós vamos ter que aguardar. (...) E temos de agir logo, porque, na Natureza, as coisas demoram a responder. Mudamos a composição química da atmosfera intensamente nos últimos 150 anos, mais ainda no pós-Segunda Guerra Mundial, e todo o sistema está respondendo. A grande questão é até onde iremos sem desequilibrar tudo e ter uma catástrofe ambiental, um desequilíbrio do meio ambiente. Esse é o grande perigo hoje em dia. Existe também uma questão mais profunda, ética e filosoficamente, que é o que queremos deixar para as próximas gerações... A questão da mudança do clima é complexa, ela não se resolve só com desenvolvimento de tecnologias, implica discussão de valores, de religiosidade...

A interrelação da Antártica com o Brasil

Jefferson Simões — Ao longo dos últimos 30 anos, saímos de uma visão de um Brasil tropical estanque para um país muito mais relacionado à Antártica. Já sabíamos antes que havia as frentes frias, mas agora conhecemos onde elas se formam: em lugares específicos ao redor da Antártica. Nós estamos tentando modelar qual é o fator que controla a frequência e a força delas. Descobrimos que um dos caminhos mais antigos dessas frentes frias é pela Patagônia, mas têm outros que trazem inclusive neve para o Sul do nosso território, que vem pelo Leste, pelo Oceano Atlântico. Hoje, tentamos entender o caminho inverso, o de transporte de poluentes da América do Sul que chega à Antártica. Constatamos uma série de poluição na neve; por exemplo, um aumento de arsênio vindo da mineração de cobre no Chile, de urânio vindo [das minas da] Austrália e, também, o transporte de material, organismos e vice-versa. Estudos mais antigos já haviam detectado poluição de inseticidas, herbicidas, na flora da Antártica. Infelizmente, nos últimos quatro anos, começamos a encontrar microplásticos também. Com o avanço tecnológico das análises, estamos conseguindo ver esses contaminantes. São fatores que podem afetar organismos vivos da Antártica. (...)

O que pode fazer a diferença

Jefferson Simões — Cada vez mais acredito que não existe soluções milagrosas nem científicas, nem técnicas, mas posições de valores, de uma filosofia mais profunda, na qual se entenda a falta de sentido da acumulação — e olha que não precisa ser nem religioso [para entender isso]. Basta apenas ser lógico, racional, para saber que você não leva nada desse planeta. Quando você começa a acumular, fazer coisas desnecessárias, entrar nesse consumismo sem pensar, é levado a destruir o meio ambiente, isso não é um caminho correto, é insustentável por longo período. Eu não sou contra o consumo, não estou fora da realidade, mas temos de ter em mente o respeito aos limites da Natureza.