Inclusão na saúde

Por que os sintomas de doenças cardiovasculares em mulheres são muitas vezes negligenciados

Dr. Cláudio Domênico

06/03/2018 às 17h31 - terça-feira | Atualizado em 09/03/2018 às 09h38

Shuttestock

O mundo globalizado vive um período de inúmeras transformações e adaptações rápidas e constantes em nosso cotidiano. O avanço tecnológico e a conectividade em tempo real fazem com que conceitos históricos sejam revisados e ganhem novas leituras. A diferença entre os gêneros feminino e masculino desde os aspectos biológicos até os sociais são amplamente debatidos na mídia e na sociedade. Mas será que existem realmente diferenças significativas entre o coração feminino e o masculino, de forma que tenhamos de discursar sobre esse tema?

Andreia Fontenele
Professor Cláudio Domênico é doutor e mestre em Cardiologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e chefe da unidade de cardio-oncologia do Hospital Pró-Cardíaco.

A resposta é SIM! Há uma série de motivos biológicos, genéticos, culturais, ambientais e comportamentais que justificam essa afirmação. As mulheres cada vez mais participam do mercado de trabalho. A partir da década de 1970, elas vêm desfazendo a equivocada imagem do homem como provedor exclusivo do lar e, progressivamente, assumem os principais cargos e fatias dos empregos em todos os setores. Infelizmente, a determinação e o esforço que norteiam essa positiva mudança de cenário muitas vezes não são reconhecidos. Em 2017, pesquisas realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e pela empresa Catho mostraram que os homens têm remuneração maior que as mulheres na maioria dos setores estudados em nosso país, e a discrepância salarial pode alcançar até 60% conforme a função exercida.

Invisibilidade

No âmbito da saúde, esse diferencial também existe e tem merecido maior atenção dos profissionais ligados à área. Até 1985, as mulheres raramente eram incluídas nos estudos científicos. A partir de 1993, em conjunto com outras “minorias”, como definiu a FDA, agência governamental do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos, elas começaram a ser inseridas em tais trabalhos.

Em 1991, a dra. Bernadine Healy (1944-2011) descreveu a Síndrome de Yentl, caracterizando o que se chamou de “invisibilidade médica do sexo feminino”. Foi relatada pela primeira vez a dificuldade das mulheres em convencer os médicos de que seus sintomas eram reais e deveriam ser valorizados e tratados. Desde 2005, no intuito de estudar e conhecer mais a fundo os aspectos de males relacionados a elas às mais destacadas sociedades de cardiologia do Brasil e do mundo criaram departamentos exclusivos para o estudo do comportamento das doenças cardíacas na população feminina.

O infarto e o acidente vascular cerebral (AVC) representam as principais causas de morte em mulheres no mundo, inclusive com índices mais elevados que nos homens. Quando comparados às temidas neoplasias, notamos que as doenças cardiovasculares matam mais que a soma de todos os cânceres: a taxa de óbito por problema cardiovascular é de quatro a seis vezes maior, comparada à do câncer de mama, por exemplo.

“Igualdade, Saúde e Felicidade devem caminhar lado a lado para o bem-estar da sociedade. (...) Por isso, os ganhos conquistados não devem ser ofuscados por malefícios que o sexo feminino possa vir a sofrer.”

O diagnóstico de infarto no público feminino representa um enorme desafio para os médicos clínicos e cardiologistas. Ao mesmo tempo que pode gerar sintomas evidentes com gravidade mais acentuada que no sexo masculino, apresenta menor grau de obstrução dos grandes vasos do coração e dificulta muito o seu diagnóstico e tratamento. Dor no peito nem sempre está presente; pode haver apenas cansaço e falta de ar. Comumente, tais sintomas podem ser subvalorizados ou mal avaliados, sendo interpretados como indicativos de ansiedade ou depressão e, assim, essas pacientes não irão receber a terapia adequada para o quadro.

Situações de elevado estresse físico e emocional podem promover a liberação de altas doses de adrenalina e simular quadros clínicos semelhantes ao infarto, como dor no peito, suor frio e alterações típicas no exame de sangue e no eletrocardiograma. Essa situação é conhecida como doença de Takotsubo e ocorre mais frequentemente após a menopausa.

As transformações de pensamentos e costumes da sociedade também influenciam a saúde feminina. À medida que as mulheres ampliam seus domínios e territórios na sociedade, deixando para trás a imagem restrita aos afazeres domésticos, modificam os seus hábitos e comportamentos de maneira nem sempre benéfica. A proporção de mulheres que fumam e consomem álcool aumenta a cada dia, assim como os índices de sobrepeso e obesidade. Os malefícios desses hábitos a curto, médio e longo prazos irão impactar diretamente em sua qualidade de vida e longevidade.

A conquista da independência e autonomia pelas mulheres representa uma vitória que deve ser celebrada por todos. Esses avanços trazem, com certeza, benefícios para as gerações atual e futura. Entretanto, toda coroa de louros pode conter rosas e espinhos. Por isso, os ganhos conquistados não devem ser ofuscados por malefícios que o sexo feminino possa vir a sofrer, como o acúmulo de tarefas, a aquisição de novos vícios e uma atenção inadequada à saúde. Igualdade, Saúde e Felicidade devem caminhar lado a lado para o bem-estar da sociedade.

Segundo o humanista e escritor judeu Elie Wiesel (1928-2016), ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 1986: “Nenhuma raça é superior; nenhum credo é inferior”. Devemos acrescentar à ilustre frase o importante e necessário conceito de igualdade de gêneros, garantindo que os direitos de todos estejam plenamente assegurados e que, de fato, sejam postos em prática.